segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

AFRICANOS E ECONOMIA



Africanos e africanas desde cedo influenciaram a economia da cidade de Salvador e Recôncavo baiano. Um trabalho realizado nos arquivos da cidade de Cachoeira, por exemplo, foi capaz de nos revelar ocupações mais variadas. Certo é que muito antes da economia entrar em declínio no século XIX, homens e mulheres negras transitaram nas cidades com gamelas e tabuleiros, verdadeiros altares andantes onde iguarias africanas alternavam-se o tempo todo com comidas, ora de origem indígena, portuguesa, ora moura, africanizadas pelos sentimentos e modos de preparar que faziam referência a um passado que a escravidão não foi capaz de apagar. Autores como Pierre Verger e Roger Bastide nos legaram trabalhos bastante ilustrativos sobre a importância da arte de mercar e do mercado para os diversos grupos que nos constituíram. Mercado este, atravessado de sacralidade, fato que levou alguns autores a confusão entre a comida ritual e as vendidas nas ruas. É bem certo que muito antes da constituição dos cultos descritos a partir do século XIX, as ruas sempre conheceram “comidas africanas”. O professor de grego Vilhena, nas suas famosas cartas nos informa sobre algumas destas iguarias, pena que poucas delas permaneceram no tabuleiro, não cedendo espaço aos modismos e invenções que na atualidade acompanham a cozinha afro-brasileira. Como esquecer das chamadas “carambolas”, mulheres citadas por Vilhena que regulavam se não a economia, parte dela, impondo seus preços aos peixes comercializados numa das portas da cidades. Chamadas de atravessadoras, estas libertas foram motivo de atenção. E como não falar sobre as mulheres que vendiam nas suas gamelas carnes como mocotó, fato, sarapatel e outras iguarias ainda hoje condenadas pelo “nutricionismo”, ora amparado pelo discurso higienista, ora pela busca de comidas mais saudáveis. Gosto muito de uma tela de Debret que retrata a venda nas ruas da cidade antiga do Rio de Janeiro. Vale a pena contemplar os tachos de angu justapostos, denotando que tal iguaria já havia caído no gosto popular. E o vatapá aclamado nas mesas parisienses, segundo Câmara Cascudo? Outro exemplo de iguaria afro-brasileira no mundo. Não podemos deixar de citar o velho Gilberto Freyre que atento chamou a atenção para os doces dos tabuleiros que nas ruas de Recife rivalizavam com os que saiam dos conventos. Falando em doces, onde foi parar a “amoda”, será que as doceiras “perderam o ponto”, ou a mistura de rapadura com farinha de mandioca e gengibre não sobreviveu aos novos gostos? E o aberém? Segundo Manuel Querino, transformado em refresco? Este sim, ainda podemos encontrar em alguns terreiros de candomblé como comida litúrgica. Talvez a sua permanência se explique por fazer parte de iguarias que ninguém tem acesso à sua feitura que não se vê nem a panela, nem o fogo e muito menos a fumaça. É comida sobre a qual ninguém fala, ou não está autorizado a falar pelo “segredo”. Aberém também já foi comida de rua. Hoje a moda é o akarajé, não o akará bem parecido com os que ainda hoje podem ser encontrados nas ruas de algumas cidades africanas, mas o semelhante ao hambúrguer, acompanhado com o refrigerante de cola. Resguardadas as criticas, que bom que ele permaneceu, juntamente com o abará, a passarinha e o bolinho de estudante. Até a pimenta ficou menos picante, respeitando a exigência da demanda turística. Não podemos deixar passar as “mulheres do mingau”. Mingaus de milho, tapioca, carimã que continuam presentes dando “sustança” aos fregueses, sem falar no mungunzá e no cuscuz de tapioca que nunca deixaram de ser itinerantes. Hoje transitam nos carrinhos empurrados pelos “meninos”, resistindo a todo e qualquer “discurso higienista” que insiste sobre os perigos da contaminação através das “comidas de rua”. Bom mesmo foi que estas comidas deram visibilidade nos últimos anos a inserção do homem negro e da mulher negra na economia da cidade de Salvador, os tirando do anonimato e da classificação na maioria das vezes preconceituosa do mercado informal, o que para nós é excelente, pois traz a memória de Maria de São Pedro, Cecília do Bonocô, Aninha e tantas outras mulheres que através do comércio de elementos rituais ou iguarias reforçaram os laços entre partes do Continente Africano, a Ásia e o Brasil. Estas “mulheres de saia” merecem mesmo o título de “mulheres do partido alto”, ou “homens de elite” como Martiniano Eliseu do Bonfim e Felisberto Sowzer, exímio conhecedor de inglês, conhecido como Benzinho, descendente direto da família Bangboxé. Homens e mulheres com seus balangandãs, que acumularam riquezas, retraçaram a própria cidade, que mesmo estigmatizados nos legaram a maior fortuna; o orgulho de sentirmos seus descendentes quando descobrimos que somos negros.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

CONHEÇA ALGUNS DE NOSSOS LIVROS



Trabalho que contextualiza a trajetória e formação dos Agentes de Pastoral Negros, abordando os principais desafios pastorais para a Igreja. Destaque para o diálogo inter-religioso que o grupo nascido nos finais dos anos 80 provocava. Tratava-se agora de retornar as origens nergo-aricanas e indigenas para melhor entender a mensagem do evangelho.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O DEUS DA VIDA NAS COMUNIDADES AFRO AMERICANAS E CARIBENHAS


Pontos para nossa reflexão


1. A teologia que nasceu e se desenvolve na América e no Caribe privilegia os pobres por serem os preferidos de Deus. Ela não parte dos princípios gerais, das verdades incontestes ou dos dogmas proclamados. Humildemente, o teólogo da libertação contempla a realidade do povo e identifica nessa realidade os apelos do Senhor. É o primeiro tempo da teologia: contemplar e fazer silêncio. A seguir vem a reflexão teológica: o que Deus está dizendo, quais são os seus apelos diante desta realidade? O processo vale para os níveis socioeconômicos e culturais; vale igualmente para o religioso. O que Deus diz ao teólogo que se coloca frente ao comportamento religioso das comunidades negras? Quem sabe, por serem mais pobres socialmente não serão muito mais ricas em valores humanos? Valores evangélicos talvez perdidos pela cristandade e que podem e devem ser reconquistados com a ajuda de quem conseguiu conservá-los em suas tradições e ritos religiosos apesar de todas as adversidades?

2. Um desses valores bíblicos é a unidade e a inseparabilidade da pessoa. Aprendemos tão bem a filosofia grega da distinção entre corpo e alma que acabamos separando os dois. O corpo é o primo pobre. Deve ser tratado com dureza para submeter- se ao espírito que é a parte nobre do homem. Aprendemos a fazer oração mental, rezamos e pedimos orações e missas pelas almas do purgatório. Os missionários pregavam nas Missões populares: "Salva a tua alma!". O próprio Livro da Sabedoria parece ter sofrido a influência dessa dicotomia ensinada pela filosofia grega. Sem entrar em discussões filosóficas, o negro nos ensina a não separar o que Deus uniu: corpo e alma formam unidade aqui e no além. O corpo é bom ou ruim tanto quanto a alma. Reza- se e celebra-se com a pessoa toda e é muito importante, indispensável mesmo, a participação do corpo. Não há partes do culto que se destinem só ao espírito. Nas celebrações do candomblé não há leituras, não há pregações, não há momentos de atividade só para o espírito enquanto o corpo deve abster-se de qualquer participação. Será por isso que o povo simples se identifica mais com as procissões do que com as missas e celebrações da Palavra? Será por isso que as Assembléias de Deus e a Renovação Carismática encontram grande aceitação entre os pequenos?

3. O negro leva muito a sério sua pertença a um Orixá. Para ele, ser "filho de Ogum" ou "filha de Yansã" é mais do que uma honra; é uma segurança. Ele sabe que é protegido, é guardado por seu Orixá, é guiado por ele e deve obedecer-lhe. O negro vive a mística da pertença. Acredito que meus antepassados beberam essa convicção na mesma fonte dos discípulos de Cristo. O Espírito Santo, o grande Orixá, aquele que vem e permanece, nos santifica, nos transforma, nos ensina a chamar Deus de Abbá, nosso Pai querido, Aquele cuja orientação devemos seguir constantemente para podermos ser filhos de Deus. Pois, "todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8,14).

4. A religião dos Orixás, de modo especial na cultura nagô-yorubá, atribui papel de destaque à mulher. No terreiro, a mãe-de-santo é a pessoa mais importante, a maior autoridade, a sacerdotisa. Um advogado, ex-prefeito de Salvador, participara da mesma reunião a que me referi acima, dos agentes de pastoral negros com representantes dos cultos afro-brasileiros. Ele chegou um pouco atrasado. Antes de fazer qualquer saudação ou dar explicações, ele se dirigiu a um ponto da sala, ajoelhou-se diante de uma senhora negra idosa e beijou-lhe respeitosamente a mão. Era a mãe-de-santo do terreiro a que ele pertencia. Só depois se dirigiu aos demais assistentes. Mulher e terra têm em comum o axé, a energia, a fecundidade. Daí a semelhança de tratamento: trata-se com respeito e gratidão a mãe-terra e a mãe-de-santo. Certamente outra seria a situação religiosa de nossos países latino-americanos e caribenhos se esse valor religioso tivesse sido conservado. Teríamos milhares e centenas de milhares de pequenas comunidades cristãs organizadas na base do terreiro, com uma mãe-de-santo à frente, incorporando os valores evangélicos nas tradições do candomblé e mantendo uma solidariedade forte e profunda com os mais pobres.

5. Somos pouco acolhedores em nossas celebrações, retrato da vida. As pessoas são números. Muitos vêm à igreja apenas para cumprir preceito ou para se abastecerem espiritualmente. Poucos vêm para se encontrar com os irmãos. Quando entram, não há quem os acolha e lhes dê alguma informação. Também não procuram ver quem já está na igreja para uma saudação; procuram ver é onde há um lugar vago que possam ocupar. Para muitos a participação se reduz à mera assistência passiva. A cultura religiosa africana é diferente. A irmã, o irmão ou visitante são cercados de atenção todo o tempo. Todos participam ativamente desde o início. Seguem o canto que é, geralmente, litânico e deixam o corpo soltar-se nos movimentos em que toda a comunidade se envolve. No final, todos participam do banquete dos Orixás. Há uma expressão simbólica de comunhão fraterna e de comunhão com a Divindade.

6. Os ritos de iniciação prolongam-se por vários anos. Não se trata de aprender princípios doutrinários, mas de conhecer e viver a prática do terreiro. Mais prolongado ainda será o tempo de preparação para a consagração ao seu Orixá. O candidato a filho ou filha-de-santo deverá preparar-se durante vários anos para deixar-se habitar pelo Orixá. A seriedade com que se fazem essas iniciações nada fica a dever ao catecumenato da antiga disciplina eclesiástica ou ao noviciado que se faz nas Ordens e congregações religiosas. Em todo caso, acredito que os mestres e as mestras de noviços lucrariam bastante se pudessem conhecer como a mãe-de-santo prepara suas filhas para se tornarem filhas-de-santo.

7. Uma questão é particularmente inquietante para mim. Os negros que conseguem estudar mostram-se muitas vezes agressivos contra a Igreja ou, pelo menos, magoados com ela. Um grupo de intelectuais negros chegou a escrever-me uma longa carta que terminava assim: "o senhor, como negro, é nosso irmão; como bispo, é nosso adversário". Durante uma das semanas Fé e Compromisso, promovida pela Arquidiocese de São Paulo, foi-me dado conhecer um arcebispo sul-africano, dirigente de uma das novas Igrejas. Ele me referia que inúmeros fiéis negros da África do Sul não se sentiam bem nas Igrejas tradicionais católico romana e anglicana. Mesmo onde não havia apartheid, eles não se encontravam como pessoas. Toda a vida eclesial era ordenada e organizada dentro de padrões culturais não-africanos. Fora da própria cultura, eles não conseguiam comunicar-se com Deus e com os irmãos. A reflexão foi crescendo e concluíram que, certamente, Deus falou também aos antepassados deles; também para eles terá havido um pentecostes. Por isso, eles deveriam organizar-se como Igrejas cristãs autônomas e autóctones conservando todas as riquezas de sua própria cultura.

Na América e no Caribe, parece que a situação é mais confortadora para nós das Igrejas tradicionais. A densa população negra do nosso continente permanece em nossas Igrejas. Nós negros, alimentamos, porém, a esperança de que nos seja reconhecido o direito de cidadania eclesial. Acreditamos cada vez mais fortemente que é possível o negro ser discípulo de Cristo e viver na Igreja sem deixar de ser negro, sem renunciar a sua cultura, sem ter de abandonar a religião dos Orixás que, como o judaísmo, poderá deixar-se impregnar da mensagem de Jesus Cristo.


Conclusão:
Deus conosco também, os Negros


Animados por esta esperança, podemos concluir que o Deus da Vida se revela ao povo negro como Aquele que os ajuda a recuperar sua identidade pessoal e comunitária, que reconstitui seus laços familiares ampliando o parentesco a partir da fé, que o leva a uma vivência comunitária, que o anima na luta contra a opressão, que o estimula na formação dos quilombos onde experimenta uma vida igualitária, fraterna e solidária.

Diante da história do povo negro, alimentada pela sua fé no Deus da Vida, concordo plenamente com o Pe. François de l’Espinay quando afirma que "Deus fala sob formas mui diferentes que se complementam uma à outra, e que cada religião possui um depósito sagrado: a palavra que Deus lhe disse".(7)

Como bispo negro da Igreja católica no Brasil, o mais velho na atualidade, rendo graças a Deus por Ele estar reavivando a memória destas verdades nas comunidades negras da América e do Caribe. Isto nos permite fazer nosso o louvor de Cristo: "Eu te louvo, ó Pai, Senhor do Céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos" (Mt 11,25).

Impulsionado pela revelação do Deus da Vida ao povo negro, seja-me permitido encerrar essa minha modesta participação com um trecho da marcha final da Missa dos Quilombos:


"Trancados na noite, milênios afora,
forçamos agora as portas do Dia.
Faremos um Povo de igual rebeldia.
Faremos um povo de bantos iguais.
Faremos de todos os lares
fraternas senzalas, sem mais.
Faremos a Negra Utopia
do novo Palmares
na só Casa Grande dos filhos do Pai.
Os Negros da África,
os Afro da América,
os Negros do Mundo,
na Aliança com todos os Pobres da Terra.

Seremos o Povo dos Povos:
Povo resgatado, povo aquilombado,
livre de senhores, de ninguém escravo,
senhores de nós, irmãos de senhores,
filhos do Senhor!

Sendo Negro o Negro,
sendo Índio o Índio,
sendo cada um como nos tem feito
a mão de Olorum".

Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)

II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas
São Paulo, 7-11 de novembro de 1994
_________________
7. A religião dos Orixás, Outra palavra do Deus único. In: REB, Petrópolis, 47/187, set. 1987, p. 649.



O DEUS DA VIDA NAS COMUNIDADES AFRO AMERICANAS E CARIBENHAS



Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)
II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas
São Paulo, 7-11 de novembro de 1994


O Deus da vida na religião dos Orixás

Cabe aqui recordar que "os sistema religiosos pré-letrados têm natureza basicamente diversa da experiência vivida pelas grandes religiões universais. Entretanto, em muitas religiões africanas encontram-se freqüentemente elaboradas construções abstratas e intensa espiritualidade, como se expressa na idéia de um Deus incriado e criador".(2) Na mesma obra, lemos ainda: "a noção de justiça divina, por sua vez, pressupõe que exista uma espécie de contrato firmado entre a divindade e os homens. O Ser criador assegura a vida, a terra e tudo o que nela existe, exigindo, em troca, submissão e respeito. Assim, determinados males são entendidos como recursos com os quais a divindade castiga os homens que romperam, de alguma forma, sua parte no pacto. Prescrições ritualísticas religiosas configuram-se como a única maneira de alcançar o beneplácito divino".(3) Três características das antigas religiões africanas surgem bem nítidas nessa citação, a saber, Deus é criador, existe uma aliança entre Deus e a humanidade, a religião leva a uma espiritualidade profunda.


1. Monoteísmo

Teólogos e pastores prestariam bom serviço às comunidades cristãs se as ajudassem a entender que não há politeísmo na cultura religiosa africana. Os negros vindos de África não eram politeístas. Acreditavam em um Ser supremo, criador de tudo. Que os povos de cultura nagô-yorubá o chamem com o nome de Olorum (o Inaccessível) como os hebreus o denominaram Elohim, que os bantos o chamem de Nzambi (Aquele que diz e faz) ou Kalunga (Aquele que reúne) ou Pamba ou Maúnda como os gregos o denominaram Theos, ou nós o chamamos Deus e os indígenas Tupã, Ele é sempre o supremo, o inatingível, senhor do céu e da terra.
O papa Paulo VI afirma: "A idéia de Deus como causa primeira e última de todas as coisas é o elemento comum importantíssimo na vida espiritual da tradição africana. Esse conceito, percebido mais do que analisado, vivido mais do que pensado, exprime-se de modo bastante variado de cultura a cultura. Na realidade, a presença de Deus penetra a vida africana como a presença de um Ser superior, pessoal e misterioso".(4)


2. Os Orixás

Olorum se comunica conosco e se faz presente em nós através dos Orixás que são suas forças vivas. Cada família é consagrada a um Orixá, cada pessoa é protegida por seu Orixá. A proteção é constante, mas durante o culto, o orixá poderá manifesta-se em alguns de seus filhos ou de suas filhas. São momentos inesquecíveis, de profunda experiência espiritual. Os Orixás não são deuses, mas é por meio deles que Olorum entra em contato com homens e mulheres e nós entramos em comunhão com Ele. Os Orixás têm atribuições e poderes nos diversos setores da criação. Sua função não consiste em trazer favores aos humanos, mas em transmitir-lhes o dinamismo vital que possuem e que comunicam durante o tempo em que se fazem presentes no terreiro e se manifestam nas pessoas que lhes são consagradas. "O Orixá é essencialmente orientado para o bem do homem: portanto ele ama. Como não acreditar num Deus-Amor que cria e envia o Orixá?" pergunta-nos o pe. François de l’Espinay.(5) "Cresce assim a convicção de que Deus acompanha todos os passos de seus filhos como mãe".(6)


3. Os Antepassados

Os Orixás nada têm a ver com os santos da Igreja católica. Se Santo Antônio é Ogum (em outros lugares é São Jorge), se Yemanjá é Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara é Yansã, trata-se de expedientes para confundir os brancos evitando perseguições. O que mais se assemelha ao culto católico dos santos é o culto dos antepassados. Para nós, africanos, os antepassados morreram, mas não se ausentaram. Permanecem junto de suas famílias, invisíveis, protegendo-as e orientando-as. Com elas se comunicam especialmente através dos sonhos. A morte não é um fim: é a passagem para um novo modo de ser. A resposta de Cristo aos saduceus ilumina essa crença profunda na presença dos antepassados. Deus disse: "Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Ora, Ele não é um Deus de mortos, mas sim de vivos" (Mt 22,32). Em todo terreiro, por pequeno que seja, há um espaço reservado aos antepassados. A eles se dirige uma saudação no início de cada culto.


4. Candomblé, Vodu, Xangô e outras formas de celebração

Conquanto inacessível para os seres humanos, Deus está muito presente na comunidade e na vida de cada um. A cultura africana não se preocupa com definições do Ser supremo. Contenta-se com a certeza de sua presença e de sua ação constante em favor dos humanos. Também não o invoca ordinariamente. Sendo o Inacessível, a Ele se chega através de mediações. O Orixá, a que cada um é consagrado, exerce essa função de mediador. Por sua vez, os antepassados são outro sinal da presença e da benevolência de Deus. Mas é na celebração que essa presença de Deus torna-se patente na comunidade. Celebração é festa, é alegria, é lazer. Acontece de preferência à noite e se prolonga por horas a fio indo, não raro, até a madrugada. E todos saem dali felizes. Muitos vão diretamente ao trabalho. Sentem-se até fisicamente descansados graças à experiência espiritual que viveram.

A celebração é cuidadosamente preparada. Não no sentido de escolha de textos ou de cânticos. Celebração, na cultura religiosa africana, não se compõe de leituras, reflexões e cânticos. A preparação consiste em limpar e adornar o terreiro, conseguir as oferendas e deixá-las em condição de serem apresentadas, oferecidas e consumidas. Isto exige bastante trabalho que ocupa homens e mulheres em grande número. Juntar os animais ou as aves, matá-los e cosê-los, fazer a pipoca, o cuscuz e a tapioca, dosar as bebidas, tudo isso envolve praticamente toda a comunidade. Mas isso também já é revelação de Deus presente. Na alegria dos que preparam a festa e na solidariedade no trabalho, Deus se revela o Deus-Amor.

O lugar da festa é o terreiro. Não temos templos suntuosos como o que Salomão construiu. Nem basílicas, catedrais ou santuários. A festa religiosa se faz em contato com a natureza; basta um terreiro. Melhor se for terreiro de verdade, sem cimento, sem mosaicos. Assim, ao entrar no terreiro, a pés descalços, os devotos experimentarão o importante contato com a terra. A terra é mãe e é fecunda. Ela tem axé, isto é, tem energia, tem fertilidade. É comum ao negro e ao índio o respeito para com a terra e os outros elementos da natureza. Há poucos dias, ouvíamos maravilhados uma prece que Rigoberta Menchu formulava invocando "nossa mãe a Terra, nosso pai o Sol e nossa vovozinha a Lua". Esse contato com a natureza prossegue com aspersões de água perfumada com flores e plantas aromáticas, com defumações do ambientes e das pessoas. Faz lembrar a nossa água-benta e as incensações do altar, dos ministros sagrados e dos fiéis.

São preparações necessárias para a festa. Porque a festa mesmo será o encontro com os Orixás através dos quais se realiza a experiência do encontro com Deus. Todos os presentes são envolvidos, mesmo aqueles que são apenas visitantes e não fazem parte da comunidade e não praticam a religião dos Orixás. A preparação chega ao fim com a oferta que se faz a Exu. Ele é enviado como mensageiro para avisar os demais Orixás que tudo está preparado para a chegada deles.

As filhas-de-santo formam um círculo e dão início à dança ritual da qual toda a assembléia participa. O tempo se prolonga na dança e no canto. Inesperadamente algum Orixá se manifesta. Toma posse de algum de seus filhos ou filhas que entra logo em transe. Continua dançando, mas já não percebe o que acontece em derredor dele. Não vê, não escuta, não sente: vive a maravilhosa experiência de comunhão com o seu Orixá e com Deus através dele. Desta experiência participam os demais presentes cada qual a seu modo e em intensidades diversas. Caberá ao dirigente da celebração - a mãe-de-santo na tradição yorubá - determinar o momento de despedida dos Orixás e o fim da celebração. Antes, porém, haverá a confraternização: primeiro a mãe-de-santo e suas filhas, em seguida todos os presentes participarão do banquete dos orixás. As ofertas que foram feitas são agora distribuídas com todos para que todos, sem exceção, possam entrar em comunhão com o mundo invisível.

_________________
2. As grandes religiões, São Paulo, Abril cultural, 1973, p. 835.
3. Ibidem, p. 839.
4. Mensagem Africae Terrarum, n. 8, citado em Raul RUIZ DE ASÚA ALTUNA, Cultura tradicional banto, Luanda, Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985, p. 390-391.
5. A religião dos Orixás, Outra palavra do Deus único. In: REB, Petrópolis, 47/187, set. 1987, p. 646.
6. Heitor FRISOTTI, Comunidade negra, evangelização e ecumenismo, caderno mimeografado, Salvador, 1992, p. 30).

O DEUS DA VIDA NAS COMUNIDADES AFRO-AMERICANAS E CARIBENHAS




Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)
II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas
São Paulo, 7-11 de novembro de 1994


Alegro-me porque meus olhos estão vendo a salvação que Deus preparou diante de todos os povos; estão contemplando a luz que se espalha sobre todas as nações (cf. Lc 2,30-31). Em passado não muito remoto, seria impensável uma reflexão teológica sobre cultura religiosa africana. Religião vinda da África foi sempre tratada como grosseira superstição ou como embuste diabólico de que os cristãos deviam conservar-se distantes. Nossos colonizadores, vindos de Espanha e Portugal nos séculos XVI a XIX, sentiriam cheiro de blasfêmia ou de heresia neste encontro, a começar pelo título que o encabeça: II Consulta Ecumênica de Teologia e Culturas Afro-americanas e Caribenhas.

Numa visão mais próxima de Trento do que do Vaticano II, essa reunião não poderia ser considerada nem teológica nem ecumênica. Ecumênico foi um qualificativo reservado - e ainda o é em muitos ambientes eclesiásticos - ao esforço de compreensão e comunhão entre as Igrejas cristãs. Com os não-cristãos - e este seria o caso da cultura religiosa africana - poderia haver um diálogo religioso sem atingir o nível de comunhão, sem ecumenismo portanto.

De qualquer modo, já nos distanciamos da teologia que duvidava da humanidade do negro e que justificava o cativeiro como meio de ganhar a salvação. Felizmente, os tempos são outros, especialmente a partir do Concílio Vaticano II. Ele foi, como profetizou João XXIII, um novo Pentecostes para a Igreja. Janelas se abriram e permitiram que o sopro do Espírito invadisse a Igreja e a renovasse de modo que ela passasse a entender que ela não é dona do Espírito nem dona da verdade. O Espírito sopra onde quer e não fica preso aos limites das instituições eclesiásticas. Se desde o início da criação, "um vento impetuoso soprava sobre as águas", por que negar a possibilidade de ter havido outros pentecostes antes e depois do que nos foi descrito no livro dos Atos dos Apóstolos? E se "muitas vezes e de modos diversos, falou Deus outrora a nossos pais pelos profetas" (Hb 1,1), é pelo menos possível - eu diria: é provável, é certo - que Ele tenha falado também aos nossos pais africanos e eles nos contaram o que seus pais ouviram dos profetas do Senhor.

É à luz dessa certeza atestada pelos Padres da Igreja e retomada pelo Vaticano II que se pode afirmar que esta II Consulta é ecumênica e está dentro do campo da pesquisa teológica. É teologia porque se situa na busca das "sementes do Verbo" e das "preparações evangélicas" presentes na cultura religiosa africana implantada na América e no Caribe por nossos antepassados que da África foram trazidos aos milhões como escravos. É ecumenismo, porque numa atitude de humildade e de grandeza, reconhecemos que a África tem o que nos ensinar sobre Deus e sobre o seu projeto do Reino: um mundo fraterno, solidário, alegre e feliz.

Esta II Consulta é mais um testemunho de que, mesmo reconhecendo e aplaudindo os passos significativos dados após o Vaticano II, estamos conscientes de que a Igreja ainda necessita de conversão no que toca à sua visão e relação com o povo negro e a cultura religiosa africana, especialmente com a religião dos Orixás. Uma conversão do coração e não da mente apenas. Achamos que não é suficiente reconhecer valores descobertos no estudo, na pesquisa; é necessário ir além e abrir-se a eles, acolhê-los com simpatia.

É "em nome do Deus de todos os nomes, Javé, Obatalá, Olorum, Oió",(1) que tentarei apresentar o Deus da Vida nas comunidades afro-americanas e caribenhas. Faço-o com a consciência de meus limites; não sou historiador nem pude até hoje me aprofundar no estudo das múltiplas expressões da religiosidade africana na América e Caribe. Faço-o, porém, com a ousadia de quem deseja contribuir para uma mudança de atitudes: as Igrejas cristãs hão de entender que a África pode ajudá-las a cumprir sua missão evangelizadora na América Latina e no Caribe. E nós, descendentes de um povo que foi escravizado, não precisaremos mais de esconder nossa identidade ou de camuflar nossas atitudes manifestando-as somente em ambientes de absoluta confiança. Não precisaremos deixar de ser negros para ser cristãos.

Quando estive em Salvador para as comemorações do cinqüentenário do I Congresso Eucarístico Nacional, participei de um encontro entre agentes de pastoral negros e representantes dos "cultos africanos". Nas apresentações, uma mãe-de-santo protestava: "Fui convidada para uma reunião dos católicos com representantes dos cultos africanos. Eu quero dizer que não represento nenhum culto africano. Eu sou da religião dos Orixás, tão religião como as outras". Um sacerdote presente se identificou: "Eu sou padre F., pároco da paróquia N., iniciado no terreiro de Mãe X". E uma religiosa negra também presente, fez a mesma profissão de fé: "Sou irmã Tal, da congregação Tal, iniciada no terreiro de Mãe Z". Refletindo logo depois essas surpreendentes (para mim) revelações com o pe. François de l’Espinay, ele me deixou mais surpreso ainda ao dizer- me: "Eu vim para Salvador com o objetivo de pesquisar sobre a religião dos Orixás. Senti logo que, como pesquisador, não tinha condições de entender quase nada. Foi então que me decidi a entrar para um terreiro como iniciado. Há quatro anos sou iniciado. Até hoje não encontrei nada que fosse contra a minha fé de cristão, nada contrário à minha condição de sacerdote".


Pedras no caminho


Os teólogos, os biblistas, os pastoralistas concordam com essas afirmações e assumem a posição ecumênica. Nem todos, é verdade. Talvez nem seja a maioria. Houve teólogos e pastores que não aceitaram o tema da Campanha da Fraternidade de 1988 sobre o Negro, no Brasil, e houve mais de uma diocese que não reconheceu como válido o texto-base preparado sob os auspícios da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. E se existe dissenso até entre os mestres, o que não dizer dos fiéis? O ecumenismo é um caminho longo e difícil, cheio de obstáculos. Ele deve ser percorrido pelas Igrejas e não apenas por seus dirigentes.

O grande obstáculo é o preconceito contra o negro. Pelo fato de nossos antepassados terem sido trazidos para a América e o Caribe e terem sido vendidos como escravos, criou-se uma situação de desigualdade social. Quem comprou o escravo é seu senhor, é seu dono. O escravo é sua propriedade que ele pode usar e abusar, pode vender, pode doar, pode matar. Dessa relação senhor-escravo decorre naturalmente a relação superior-inferior. O branco é superior porque é dono e deve ser reconhecido e tratado como senhor. Ainda que seja uma criança, um recém nascido, é senhor: sinhozinho, sinhazinha! O escravo pode ter sido rei ou rainha em sua nação, pode ter sido um sábio ou chefe espiritual... agora é escravo, é inferior, e deve reconhecer a superioridade do sinhozinho, deve obedecer aos caprichos da sinhazinha.

Com a abolição da escravatura, rompeu-se a relação senhor-escravo, mas permaneceu o preconceito superior-inferior. Branco diante de negro, tem complexo de superioridade e se julga mais sábio, mais evoluído, mais capaz, tem Q.I. mais alto. O negro, por sua vez, frente ao branco, se considera menos inteligente, mais fraco, menos capaz, numa palavra, é inferior. Como ser inferior, ele acha ruim seu cabelo, feios seus lábios, desajeitado seu modo de andar. Ele gostaria de ser como o branco. Por isso, espicha o cabelo, usa roupas, adornos e cosméticos como os descendentes de europeus. No início, a imitação do branco não foi fruto do complexo que ainda não se havia formado: foi uma estratégia de sobrevivência. Aceitando o batismo e venerando os santos de devoção do seu senhor, o escravo poderia captar um pouco da benevolência e poderia evitar os maus tratos ou até a eliminação sumária. Seja como for, ele foi sempre tido e havido como inferior, inclusive nas igrejas onde havia lugar separado para os senhores com suas famílias e lugar para os escravos.

Neste contexto de apartheid social e religioso, não se podia esperar que o branco permitisse ao negro a prática de uma religião que não fosse a oficial, a saber, a católica. Os pregadores comparavam ao reino de Satanás as práticas religiosas dos escravos e afirmavam que, para o negro, o ter sido feito escravo foi uma graça porque se libertou do paganismo e se tornou membro do povo de Deus. Aos meus antepassados africanos só lhes foi possível manter a fé e as tradições porque os brancos não viam em suas reuniões atos de celebração, mas meros encontros de lazer. Com uma espécie de disciplina do arcano, os africanos que vieram para a América e o Caribe puderam salvar sua identidade religiosa adotando a simbologia católica, mas lhe atribuindo outros significados. Isso ocultou mais ainda o que hoje se procura descobrir: o Deus da Vida presente nas comunidades de origem africana. ( I PARTE)

EXISTE UM PENSAR TEOLÓGICO NEGRO



Livro Organizado por Antonio Aparecido da Silva reúne artigos sobre cultura e teologia afro americana e caribenha. O trabalho é fruto da reflexão teológica que o Centro Atabaque Cultura Negra e Teologia vem fazendo desde o início dos anos 90.

domingo, 20 de dezembro de 2009

OS QUE NASCEM SAO SEMPRE VIVOS



Como diz o provérbio africano: "os que nascem são sempre vivos", isso equivale a dizer que no mundo da vida não há morte e que no mundo da morte só há vida, só há mistério encoberto pelos nossos olhos Teu sorrisso Pe. Toninho, sua serenidade, seu amor pelos pobres, sempre estará presente em cada um de nós. E temos também a certeza de que na hora do nosso regresso às matérias ancestrais, tu estarás conosco nos ajudando a entender esse mistério. O mistério da vida. OBRIGADO POR EXISTIR.

HISTÓRICO

O Grupo Atabaque Cultura Negra e Teologia, atualmente chamado Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia foi criado no inicio dos anos 90. Idealizado pelo Pe. Antonio Aparecido da Silva, chamado carinhosamente de Pe. Toninho ou Pe. Cido, o grupo reúne intelectuais de várias áreas de conhecimento. Ecumênico, o Atabaque como é conhecido vem contribuindo, sobretudo através da teologia com vários grupos a partir da afirmação de elementos fundamentais para a consolidação das identidades negro-africanas nas Américas e Caribe. O nome Atabaque evoca a importância de um instrumento que para as religiões de matriz africana, dialoga através de diversos sons com os ancestrais, unindo o sagrado ao humano. Esta é pois a nossa missão, fazer ecoar no mundo as muitas vozes negras silenciadas pelos diversos mecanismos de exclusão que nos coloca em condição de igualdade no que diz respeito à pobreza, problemas relacionados à saúde, educação e aglomeramento urbano. O Atabaque é algo que está em nós. Desta maneira, todos somos convocados a participar desse som que sai de nosso peito. No dia 17 de dezembro após uma bonita história, Olorum, o Deus da Vida, resolveu chamar para o mundo que os nossos olhos não enxergam o Pe. Toninho. Como toda partida esta ainda está sendo acompanhada pela dor e sofrimento. A saudade será grande para todos nós, mas acreditamos na ressurreição que acontece a cada instante dentro de cada um, quando levamos em frente os ensinamentos deixados pelos nossos antepassados e com certeza, como outros que nos antecederam, assim será evocado Pe. Toninho, por cada um de nós, pois a partir dele a igreja ficou mais negra.