terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

TERRITORIALIDADES AFRO-BRASILEIRAS



Ao lado da noção de ancestralidade, outro conceito fundamental para compreendermos as religiões de matriz africana é o de território, melhor entendido no plural. Esta palavra na sua concepção mais simples tem haver com a terra, que extrapola o chão que pisamos para significar todo o mundo, tudo que é extenso, tem forma, é visível a nossos olhos. Essa é, pois, a concepção de aiyê, por exemplo. Ela inclui a natureza num sentido bem amplo e as cidades, fundadas sobre os ancestrais através dos antepassados. Num trabalho realizado no Recôncavo baiano, especificamente nas cidades de Cachoeira, são Félix, Muritiba, Santo Amaro e São Gonçalo, publicado sob o título: Nagô, a nação de ancestrais intinerantes, numa entrevista recolhi a valiosa fala de um informante, perguntado sobre os africanos, a seguinte frase: “a cidade de Cachoeira é toda condenada.” Parei e fiquei olhando para ele que prosseguiu: “essas casas que você vê ai são todas de africanos, por exemplo, quando uma pessoa aluga ou compra um casarão desses, muitas vezes elas começam a passar mal. Quando se vai olhar é o espírito de um africano que está ali cobrando para ser cultuado. Tudo aqui é africano, eles nunca abandonaram as suas casas.” Essa revelação me fez pensar na cidade, entendida na maioria das vezes, por alguns discursos arquitetônicos como algo vazio ou que pode ser simplesmente reduzido a “cal e pedra”. Isso equivale dizer que a noção de território está diretamente relacionada com conceitos como espaço, lugar e conseqüentemente com o de identidade. Identidades negras reconstruídas na diáspora a partir dos universos fragmentados pela escravidão. Sobre o conceito de espaço é digno de nota acrescentar que é ele quem nos permite representar por exemplo o mundo de outra maneira. O lugar diz respeito ao local onde estamos, falamos, construímos a nossa identidade, sendo assim um conceito também político. O impacto representado pela escravidão aos mais diversos povos africanos ainda está para ser avaliado, sem falar nos danos causados ao patrimônio material e imaterial negro-africano, ao ferir conceitos básicos ligados a identidade como a terra. Nos últimos anos, alguns estudos vêm afirmando que a fragmentação das culturas africanas, sua multiplicidade, ao lado de fatores externos constituíram impedimentos para se pensar nas religiões afro-brasileiras ao lado de outras construções de origem africanas no Brasil como uma espécie de permanências negro africanas no Novo Mundo. Não é de se esperar que as múltiplas vivências trazidas com os africanos ignorassem outras aqui encontradas. Ao contrário, homens e mulheres negras estabeleceram relações com os universos simbólicos que se depararam, ora em condições de desigualdade, ora de prestígio, ora de solidariedade. A noção de casa é um bom exemplo disso. Esta casa onde se realiza o culto pode possuir dimensões amplas, mas também corresponder a um espaço doméstico que num determinado momento vai servir como local de celebração. É muito provável que inicialmente, africanos e africanas cultuaram os ancestrais em lugares bastante modestos como aqueles onde eles transitavam, era um culto discreto, realizado em alguns lugares das vias públicas, sob algumas árvores, em alguns altares improvisados ao lado de santos católicos ou mesmo levados no seu próprio corpo dentro de bolsas, etc. Quando puderam, em algumas regiões do país adquiriram em locais afastados do perímetro urbano, extensões significativas de terras, chamadas de roças. Ou mesmo, foram obrigados a se distanciar do centro da cidade, quando o culto feito através de palma não era suficiente para não despertar a polícia que de forma enérgica reprimia qualquer manifestação cultural de origem africana. Enquanto a expressão terreiro em alguns lugares serve para designar tanto a casa onde se realiza o culto, quanto a área externa, a palavra roça diz respeito a algo mais amplo. Os terreiros, na verdade, são espaços simbólicos construídos à luz de culturas provenientes de grandes civilizações como Angola, Congo, Daomé, Oyó e outras, destruídas pela escravidão. Outra palavra que nos ajuda a entender isso é a noção de natureza. Os orixás dos nagôs, os nikise dos angola/congo e os voduns dos daomeanos ao lado de ancestrais indígenas têem a terra como uma grande referência. Acredita-se que os ancestrais moram na terra ao lado de outros que são a própria terra, como o vodun Ajunsum, o nikise Kavungo e o orixá Obaluaiyê. Ao lado da terra, as árvores possuem significado especial. A expressão que aparece em alguns mitos: No tempo em que o mundo era habitado pelas árvores ilustra um período considerado primordial. Alguns orixás e nkise são cultuados em algumas árvores. Elas são, todavia lugar por excelência dos voduns. Há voduns que são cultuados sob determinadas árvores e há também aqueles que são representados por elas próprias. Algumas casas de tradição jeje contam o seguinte mito: Certo dia, o céu e a terra entraram numa disputa sem fim. A terra passou a zombar do céu e vice-versa. A primeira gabava-se que lhe sustentava, era a superfície onde se erguiam as grandes cidades, o local de ida e vinda das pessoas e por fim, morada dos ancestrais. Por sua vez, o céu não deixava por menos. Urdia que ele era a garantia da vida; era nele que passeava os astros, moravam as estrelas, planavam as aves, controlava as estações e era através dele que a humanidade se guiava. Um dia, o céu muito aborrecido resolveu dá um castigo à terra. Assim, durante um longo período, a chuva não caiu mais sobre a terra. A terra seca, não pode mais garantir o sustento das plantas, os rios começaram a secar, os animais com o passar dos dias iam morrendo de sede, as doenças passaram a assolar o mundo, tudo passou a perecer. Restou apenas uma árvore, Loko. Loko é um ancestral muito antigo. É uma grande árvore (Ficus dolares) que desde cedo com sua copa aprendeu a respeitar o céu e com suas raízes profundas, amar a terra. Durante um longo período, muitos animais e até mesmo as pessoas se protegeram sob a copa de Loko. Na falta d´agua, e de vento, Loko garantia o frescor, as vezes a própria alimentação. O céu também ficou triste, a humanidade nem sequer mais olhava para ele. Antes que tudo fosse destruído, Loko mostrou ao céu e a terra que ambos possuíam a mesma importância e salvou a humanidade da extinção. As plantas em linhas gerais possuem enorme significado para as religiões de matriz africana. São delas que são extraídas os remédios e venenos. As folhas fornecem também a seiva, sangue que circula dentro de todos os seres vivos e também as combinações que compõem os banhos que visam restabelecer o equilíbrio do ser humano. Nos terreiros as folhas aparecem na forma do orixá Ossain, do Ninkice Katendê, do vodun Agué, ou mesmo dos caboclos, ancestrais indígena presentes nas religiões afro-brasileiras. Ao lado das folhas, ganham destaque, as raízes, as sementes, os grãos, os frutos e as flores. Não podemos falar do universo das religiões afro-brasileiras sem mencionarmos a água. Estas são primordiais. Muitos ancestrais trazidos para o Brasil nada mais são do que rios, cachoeiras e lagos, que além do sustento garante as idas e vindas de pessoas e dão proteção a grupos inteiros. Todos estes elementos são reunidos no conceito de territorialidade, ameaçado constantemente, ora pela especulação imobiliária, ora pelo abandono dos órgãos públicos de alguns espaços sagrados. Como exemplo do primeiro, na cidade de Salvador temos o caso do Vale Encantado em Patamares que trava uma luta na justiça para sobreviver, sem falarmos do Parque São Bartolomeu, área cuja transformação em Parque significou o abandono. Ainda hoje o povo de candomblé luta para garantir alguns espaços públicos fundamentais para a manutenção de seus rituais, fato que não somente nos ajuda a pensar na intolerância religiosa mas também na cidade que os africanos e africanas traçaram a partir de locais como a Jaqueira do Carneiro, Ladeira do Cabula, bairro da Saúde e outros. Nos ajudam a pensar a cidade de Salvador, por exemplo, não apenas como a mais negra da diáspora, mas a que onde homens e mulheres negras reelaboraram visões de mundo a partir de conceitos que não lhes colocavam como centro, mas ponto de partida de povos que “desde o inicio do mundo” marcharam para todas as partes da terra.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O ANO BOM PARA AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA


Ao contrário do Natal, festa de influência cristã, ocasião em que acontece também nas comunidades terreiros a “troca de presentes”, o ano novo, chamado de “ano bom” reveste-se de grande significado para o povo de candomblé. Como os demais momentos de passagem, nesta ocasião se aproveita para reforçar os laços entre os iniciados(as) e seus ancestrais, daí a observância de alguns ritos como o de trocar as águas das quartinhas dos orixás, vodus e ninquices. Este gesto dentre outros, possui a função de evocar na comunidade que a vida deve ser vista como continuidade, expressa no grupo reunido em torno do sagrado para celebrar e pedir pelo novo ano que se inicia. Desta maneira ele é recebido com muita alegria. Para isso são realizadas algumas oferendas e todo espaço terreiro juntamente com as pessoas que o compõem são preparados através de banhos rituais que mais do que “limpar o corpo”visam afirmar e estreitar os laços entre os indivíduos e a sua ancestralidade, garantindo, assim a permanência dos chamados elementos civilizatórios negro-africanos no Novo Mundo. É também o momento em que os ancestrais são consultados e o babalorixá ou yalorixá traz através dos ancestrais uma explicação para o novo ano. Cada vez mais, até para atender as expectativas da mídia, ou mesmo resguardar o momento secreto, ou reservado a poucos iniciados, tem se popularizado a idéia de que o orixá associado ao dia da semana em que se inicia o ano, terá a regência sobre o mesmo. Na verdade, todos os dias da semana pertencem aos orixás, mas não vamos entrar nesse debate até mesmo para não frustrarmos a mídia ou os órgãos de turismo, sobre os quais estamos sempre nos referindo pela capacidade de criar expectativas nas pessoas, ao menos naqueles que buscam um contato pela primeira vez com as religiões de matriz africana. Verdade é que cada comunidade realiza a sua consulta. Ë ela quem dirá, através do jogo de búzios, qual ancestral reinará sobre o ano, na verdade, melhor seria, naquela casa. Isso na verdade serve mais como uma homenagem ao ancestral, pois queremos mesmo é que todos reinem durante todos os dias do ano. Dito isso, vale chamar a atenção para o fato de que o mês de janeiro na cidade de Salvador é muito especial, pois muitos terreiros de candomblé iniciam suas festas com o chamado Ciclo das Águas que já nos ocupamos. Daí pode-se ver em muitos terreiros um enorme pano branco, chamado: alá, estendido do portão de entrada até a porta principal do barracão. Sob esse pano, recomenda-se que não se transite com roupas coloridas. Ele representa o próprio Oxalá, todos os ancestrais que constituíram o universo e os mantém. O alá é um pano sem forma, sem começo e sem fim e representa o infinito, a matéria ancestral da qual tudo que tem vida se desprende. Assim, as celebrações do ano novo não se esgotam no dia primeiro, mas se desenrola durante dezesseis dias, chamados: “dezesseis dias de branco”, ocasião em que o consumo do azeite de dendê é suspenso para fazer memória ao momento em as primeiras civilizações eram intinerantes e se alimentaram de comidas a base de raízes e grãos transformados em farinhas e papas. No terreiro Pilão de Prata, por exemplo, o ano bom inicia-se com o Ciclo de Oxalá. Assim, nos próximos três domingo, pode-se assistir a história da criação através de cerimônias dedicadas a Oduduwa, Oxalufan e Oxoguian. O primeiro é o próprio Universo criado. Costuma-se dizer: “Oduduwa é o mundo”. Segundo alguns mitos este ancestral teria criado a cidade sagrada de Ilê Ifé, centro religioso dos povos iorubá. Oxalufan teria criado os seres vivos. É este princípio que mantém o que está sobre a terra, em cima da terra e debaixo da mesma. O último domingo, consagrado a Oxoguian nos relembra que as primeiras civilizações africanas já eram dotadas de tecnologia, representada pelo pilão, instrumento que introduziu modificações significativas nos grupos que enfrentavam a guerra e a fome como principais desafios à sua sobrevivência. O texto de hoje é, assim uma introdução. Na medida do possível vamos procurar fazer memória de cada ancestral. Isso nos ajudará a entender o significado de algumas celebrações e quem sabe ajudará a dar significado a passagens de nossa própria vida. Afinal o que vivemos é uma continuidade iniciada no momento em que Olodumaré o Deus da Vida resolveu nos conceber como desdobramento de sua natureza Divina. Vamos em frente e Feliz Ano Novo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A CIENCIA E A TECNOLOGIA QUE OS AFRICANOS INVENTARAM


Pena que a idéia tardia de ciência reelaborada no século XIX não foi capaz de incorporar as contribuições legadas pelas diversas civilizações africanas. Ao contrário, ao mesmo tempo em que se construía uma idéia de saber baseado na comprovação através da experiência, também se produzia um discurso depreciativo sobre o homem e a mulher negra, baseado em teorias que desautorizavam dentre outras coisas, os seus corpos. Assim se afirmava que o continente africano não tinha história, por exemplo, ou reservava a este, palavras preconceituosas como primitivismo ou pensamento infantil desprovido de qualquer veracidade quando se referia ao saber das religiões tradicionais.
No Brasil, a constituição das religiões de matriz africana é contemporânea a este episódio que se outrora empurrava para o mundo do diabo as práticas africanas, agora através de uma falsa ciência, condenava-se africanos(as) e seus descendentes a viver num mundo construído à margem de um pensamento que acabava de se reinventar no final do século XIX. A história das religiões de matriz africana é assim, uma história de enfrentamentos constantes de discursos que desde cedo silenciou-se sobre o legado, continuidade ou mesmo reinvenção dos universos africanos fragmentados pela escravidão.
Comecemos pelo Egito, que durante muito tempo foi representado ou fora do Continente africano, ou como uma população branca. É bem certa a idéia de que o pai da medicina é certamente africano e não o grego Hipócrates. Os egípcios tinham uma visão integrada do corpo, em outras palavras, a mumificação só era possível graças não apenas a crença na continuidade da vida após a morte, mas ao conhecimento de que o corpo forma um organismo, conjunto de partes integradas. Isso perpassa a maioria do pensamento africano. É aquela idéia da teia a qual sempre nos referimos. Talvez dos africanos e dos povos vizinhos com os quais desde cedo se relacionaram apenas restou a imagem da cobra como símbolo da medicina, interpretada posteriormente como símbolo de traição. Para alguns grupos africanos entrados no Brasil, por exemplo, ao contrário, a cobra, chamada Dan, não é simplesmente um ser, mas famílias agrupadas sob tal nome: o povo da cobra. A cobra é símbolo de crescimento, prosperidade, como tudo que é alongado ou cresce para cima. O Antigo Reino do Dahomé, Abomé ou Danxomé, atual República de Benin, acreditava que estava assentado sobre o corpo de Dan, daí a origem do nome. Vamos encontrar a mesma imagem na cidade de São Luís do Maranhão, “a ilha que vive circulada por uma grande cobra que morde a sua calda.” No dia em que Dan deixar de fazer esse movimento, a ilha desaparece. Dan é símbolo da ciência africana que se movimenta em círculo no sentido anti horário como a roda nos terreiros de candomblé.
Várias vezes tenho lembrado sobre o profundo conhecimento da tecnologia do ferro que os povos chegados ao Brasil chamados genericamente angolas/congos possuíam. Não precisamos nem relembrar a mudança na vida das civilizações quando o arado de madeira foi substituído pela enxada. E aqui lembramos do ancestral Ogun, literalmente: o ferro. Ogun representa uma verdadeira revolução no mundo da tecnologia e do desenvolvimento, talvez tenha sido por isso que desde cedo os ferreiros foram considerados mágicos. Ogum trouxe o fogo para dentro de sua casa e graças a ele, pode forjar os instrumentos cirúrgicos.
Em textos anteriores já chamamos a atenção para a importância do cordão umbilical para os grupos africanos, ao menos aqueles que chegaram ao Brasil. Da forma como a criança vinha ao mundo e dos cuidados que se tinha com o cordão, acreditava-se na possibilidade de prever ou mesmo interferir em acontecimentos como doenças e morte, por exemplo. Em outras palavras, o cordão umbilical era tratado como uma síntese da pessoa. Pena que a idéia de DNA chegou tarde demais para a ciência. Ainda hoje este pensamento continua vivo nas comunidades terreiros.
E a idéia da vida como um todo integrado? Para o “ pensamento africano” o Mundo faz parte do principio vital, por isso ele é vivo, assim como tudo que pertence a ele. Como lembra a tradição bakongo: Nganga Zambi, também chamado Kalunga, fez tudo junto, como um pacote e dentro desse pacote colocou de tudo, estava criado o ciclo da vida. Em outras palavras, a separação veio depois, mas estar no mundo é fazer parte da Kanga que Kalunga amarrou todas as coisas dando inicio a tudo que tem principio, mas não tem fim, pois a vida é um eterno renascimento. Graças a isso, o todo é maior do que a soma das partes, mais a menor parte contém o Todo, daí o cuidado com tudo aquilo que sai do corpo e com as extremidades.
E como não falarmos da matemática? Não dos números, mais de idéias como: precisão, infinito, grandeza, etc. Basta prestarmos atenção nas linhas que se encontram traçadas no corpo dos iniciados, ou nas linhas paralelas, os círculos que demarcam dias, baseados onde o sol nasce e onde ele se poe.
E a escrita? Outro legado africano das populações presentes nos limites do deserto de Saara e do Sudão. Pena que desde cedo se criou a oposição entre esta e a chamada oralidade, que venho insistindo que não pode ser compreendida desta maneira. Há várias formas de linguagem, há até aquelas que incluem o não dito e o silêncio. Mais uma vez o exemplo é o corpo dos iniciados. O corpo dos iniciados é um texto, somente compreendido pelo grupo religioso que está constantemente lhe reescrevendo.
Gostaria ainda de lembrar das várias técnicas de adivinhação desenvolvidas pelos africanos e mantidas ainda hoje nos terreiros de candomblé. Como dizer que esse saber não é científico? Ou por que sempre se está procurando desautorizar estes conhecimentos em nome de uma ciência? Não estamos nos referindo a práticas que apreciamos no cotidiano ou em ocasiões especiais como no final de ano, quando alguns sacerdotes aceitam ser expostos pela mídia transformando um constituinte do saber ancestral em algo, no mínimo exótico e curioso. Refiro-me a saberes complexos, elaborados, guardados por poucos sacerdotes e sacerdotisas que ao invés de adivinhar, divinizam; tornam as situações vividas pelas pessoas, divinas. Em outras palavras, interpretam o divino que esta nas pessoas através dos chamados caminhos; caminhos múltiplos que se encontram na encruzilhada.
Não poderia deixar de mencionar o conhecimento diverso elaborado desde cedo pelos africanos sobre as curas e doenças. Isso reaparece nas religiões de matriz africana, onde o mais importante não é a doença, mas conduzir o doente à cura. Junta-se a isso, o valor atribuído a comida. Nos terreiros tudo come, recebe tratamento especial. Sem comida não há vida. As inovações introduzidas pela chamada era da modernidade na alimentação talvez seja um dos maiores desafios para as comunidades terreiros nos próximos 100 anos. Aqui, saúde e comida estão interligadas. Esse é um tema que merece uma reflexão a parte. Certo que nas comunidades terreiros não se come apenas iguarias que resistem á estas intervenções, isso é observado apenas nas chamadas “comidas ritual”, embora aos poucos esse fato venha se modificando. Verdade é que desde cedo, os terreiros adotaram uma alimentação a base de inhame, por exemplo, reconhecido apenas hoje como algo que reúne várias funções, dentre elas a de ser preventivo contra o câncer.
E o pilão? A tecelagem? Contribuições africanas que reaparecem nos terreiros de candomblé onde a idéia de fiar é muito importante. Uma rede é constituída de fios. Mais uma vez a idéia da teia. È o entrelaçamento dos fios que sustentam a teia da vida, lhe dando equilíbrio. Essa é a razão pela qual em algumas tradições se diz que Yemanjá é a dona da cabeça, cabeça que representa todo o corpo. Yemanjá não segura apenas as nossas cabeças, mas está presente em tudo que se combina, nos fios de conta, por exemplo, outra imagem bastante ilustrativa do que estamos falando. Ogun inventou a forja trazendo ao mundo a ciência e junto com Yemanjá, sua mãe criou-se a tecnologia, entendida como um modo de fazer sempre aperfeiçoado, ou um fazer sistemático sempre aprimorado. Quer entender mais? Observe atentamente os fios que “enfeitam” o pescoço dos iniciado; por mais que as contas possam ser diferentes, elas compõem um conjunto, formam um sistema, garantido por Yemanjá que não permite que as linhas que formam o mundo se partam, garantindo assim o equilíbrio de tudo que tem vida. Talvez este seja um dos maiores desafios para o próximo saber cientifico que esta para se constituir.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

AFRICANOS E ECONOMIA



Africanos e africanas desde cedo influenciaram a economia da cidade de Salvador e Recôncavo baiano. Um trabalho realizado nos arquivos da cidade de Cachoeira, por exemplo, foi capaz de nos revelar ocupações mais variadas. Certo é que muito antes da economia entrar em declínio no século XIX, homens e mulheres negras transitaram nas cidades com gamelas e tabuleiros, verdadeiros altares andantes onde iguarias africanas alternavam-se o tempo todo com comidas, ora de origem indígena, portuguesa, ora moura, africanizadas pelos sentimentos e modos de preparar que faziam referência a um passado que a escravidão não foi capaz de apagar. Autores como Pierre Verger e Roger Bastide nos legaram trabalhos bastante ilustrativos sobre a importância da arte de mercar e do mercado para os diversos grupos que nos constituíram. Mercado este, atravessado de sacralidade, fato que levou alguns autores a confusão entre a comida ritual e as vendidas nas ruas. É bem certo que muito antes da constituição dos cultos descritos a partir do século XIX, as ruas sempre conheceram “comidas africanas”. O professor de grego Vilhena, nas suas famosas cartas nos informa sobre algumas destas iguarias, pena que poucas delas permaneceram no tabuleiro, não cedendo espaço aos modismos e invenções que na atualidade acompanham a cozinha afro-brasileira. Como esquecer das chamadas “carambolas”, mulheres citadas por Vilhena que regulavam se não a economia, parte dela, impondo seus preços aos peixes comercializados numa das portas da cidades. Chamadas de atravessadoras, estas libertas foram motivo de atenção. E como não falar sobre as mulheres que vendiam nas suas gamelas carnes como mocotó, fato, sarapatel e outras iguarias ainda hoje condenadas pelo “nutricionismo”, ora amparado pelo discurso higienista, ora pela busca de comidas mais saudáveis. Gosto muito de uma tela de Debret que retrata a venda nas ruas da cidade antiga do Rio de Janeiro. Vale a pena contemplar os tachos de angu justapostos, denotando que tal iguaria já havia caído no gosto popular. E o vatapá aclamado nas mesas parisienses, segundo Câmara Cascudo? Outro exemplo de iguaria afro-brasileira no mundo. Não podemos deixar de citar o velho Gilberto Freyre que atento chamou a atenção para os doces dos tabuleiros que nas ruas de Recife rivalizavam com os que saiam dos conventos. Falando em doces, onde foi parar a “amoda”, será que as doceiras “perderam o ponto”, ou a mistura de rapadura com farinha de mandioca e gengibre não sobreviveu aos novos gostos? E o aberém? Segundo Manuel Querino, transformado em refresco? Este sim, ainda podemos encontrar em alguns terreiros de candomblé como comida litúrgica. Talvez a sua permanência se explique por fazer parte de iguarias que ninguém tem acesso à sua feitura que não se vê nem a panela, nem o fogo e muito menos a fumaça. É comida sobre a qual ninguém fala, ou não está autorizado a falar pelo “segredo”. Aberém também já foi comida de rua. Hoje a moda é o akarajé, não o akará bem parecido com os que ainda hoje podem ser encontrados nas ruas de algumas cidades africanas, mas o semelhante ao hambúrguer, acompanhado com o refrigerante de cola. Resguardadas as criticas, que bom que ele permaneceu, juntamente com o abará, a passarinha e o bolinho de estudante. Até a pimenta ficou menos picante, respeitando a exigência da demanda turística. Não podemos deixar passar as “mulheres do mingau”. Mingaus de milho, tapioca, carimã que continuam presentes dando “sustança” aos fregueses, sem falar no mungunzá e no cuscuz de tapioca que nunca deixaram de ser itinerantes. Hoje transitam nos carrinhos empurrados pelos “meninos”, resistindo a todo e qualquer “discurso higienista” que insiste sobre os perigos da contaminação através das “comidas de rua”. Bom mesmo foi que estas comidas deram visibilidade nos últimos anos a inserção do homem negro e da mulher negra na economia da cidade de Salvador, os tirando do anonimato e da classificação na maioria das vezes preconceituosa do mercado informal, o que para nós é excelente, pois traz a memória de Maria de São Pedro, Cecília do Bonocô, Aninha e tantas outras mulheres que através do comércio de elementos rituais ou iguarias reforçaram os laços entre partes do Continente Africano, a Ásia e o Brasil. Estas “mulheres de saia” merecem mesmo o título de “mulheres do partido alto”, ou “homens de elite” como Martiniano Eliseu do Bonfim e Felisberto Sowzer, exímio conhecedor de inglês, conhecido como Benzinho, descendente direto da família Bangboxé. Homens e mulheres com seus balangandãs, que acumularam riquezas, retraçaram a própria cidade, que mesmo estigmatizados nos legaram a maior fortuna; o orgulho de sentirmos seus descendentes quando descobrimos que somos negros.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

CONHEÇA ALGUNS DE NOSSOS LIVROS



Trabalho que contextualiza a trajetória e formação dos Agentes de Pastoral Negros, abordando os principais desafios pastorais para a Igreja. Destaque para o diálogo inter-religioso que o grupo nascido nos finais dos anos 80 provocava. Tratava-se agora de retornar as origens nergo-aricanas e indigenas para melhor entender a mensagem do evangelho.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O DEUS DA VIDA NAS COMUNIDADES AFRO AMERICANAS E CARIBENHAS


Pontos para nossa reflexão


1. A teologia que nasceu e se desenvolve na América e no Caribe privilegia os pobres por serem os preferidos de Deus. Ela não parte dos princípios gerais, das verdades incontestes ou dos dogmas proclamados. Humildemente, o teólogo da libertação contempla a realidade do povo e identifica nessa realidade os apelos do Senhor. É o primeiro tempo da teologia: contemplar e fazer silêncio. A seguir vem a reflexão teológica: o que Deus está dizendo, quais são os seus apelos diante desta realidade? O processo vale para os níveis socioeconômicos e culturais; vale igualmente para o religioso. O que Deus diz ao teólogo que se coloca frente ao comportamento religioso das comunidades negras? Quem sabe, por serem mais pobres socialmente não serão muito mais ricas em valores humanos? Valores evangélicos talvez perdidos pela cristandade e que podem e devem ser reconquistados com a ajuda de quem conseguiu conservá-los em suas tradições e ritos religiosos apesar de todas as adversidades?

2. Um desses valores bíblicos é a unidade e a inseparabilidade da pessoa. Aprendemos tão bem a filosofia grega da distinção entre corpo e alma que acabamos separando os dois. O corpo é o primo pobre. Deve ser tratado com dureza para submeter- se ao espírito que é a parte nobre do homem. Aprendemos a fazer oração mental, rezamos e pedimos orações e missas pelas almas do purgatório. Os missionários pregavam nas Missões populares: "Salva a tua alma!". O próprio Livro da Sabedoria parece ter sofrido a influência dessa dicotomia ensinada pela filosofia grega. Sem entrar em discussões filosóficas, o negro nos ensina a não separar o que Deus uniu: corpo e alma formam unidade aqui e no além. O corpo é bom ou ruim tanto quanto a alma. Reza- se e celebra-se com a pessoa toda e é muito importante, indispensável mesmo, a participação do corpo. Não há partes do culto que se destinem só ao espírito. Nas celebrações do candomblé não há leituras, não há pregações, não há momentos de atividade só para o espírito enquanto o corpo deve abster-se de qualquer participação. Será por isso que o povo simples se identifica mais com as procissões do que com as missas e celebrações da Palavra? Será por isso que as Assembléias de Deus e a Renovação Carismática encontram grande aceitação entre os pequenos?

3. O negro leva muito a sério sua pertença a um Orixá. Para ele, ser "filho de Ogum" ou "filha de Yansã" é mais do que uma honra; é uma segurança. Ele sabe que é protegido, é guardado por seu Orixá, é guiado por ele e deve obedecer-lhe. O negro vive a mística da pertença. Acredito que meus antepassados beberam essa convicção na mesma fonte dos discípulos de Cristo. O Espírito Santo, o grande Orixá, aquele que vem e permanece, nos santifica, nos transforma, nos ensina a chamar Deus de Abbá, nosso Pai querido, Aquele cuja orientação devemos seguir constantemente para podermos ser filhos de Deus. Pois, "todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8,14).

4. A religião dos Orixás, de modo especial na cultura nagô-yorubá, atribui papel de destaque à mulher. No terreiro, a mãe-de-santo é a pessoa mais importante, a maior autoridade, a sacerdotisa. Um advogado, ex-prefeito de Salvador, participara da mesma reunião a que me referi acima, dos agentes de pastoral negros com representantes dos cultos afro-brasileiros. Ele chegou um pouco atrasado. Antes de fazer qualquer saudação ou dar explicações, ele se dirigiu a um ponto da sala, ajoelhou-se diante de uma senhora negra idosa e beijou-lhe respeitosamente a mão. Era a mãe-de-santo do terreiro a que ele pertencia. Só depois se dirigiu aos demais assistentes. Mulher e terra têm em comum o axé, a energia, a fecundidade. Daí a semelhança de tratamento: trata-se com respeito e gratidão a mãe-terra e a mãe-de-santo. Certamente outra seria a situação religiosa de nossos países latino-americanos e caribenhos se esse valor religioso tivesse sido conservado. Teríamos milhares e centenas de milhares de pequenas comunidades cristãs organizadas na base do terreiro, com uma mãe-de-santo à frente, incorporando os valores evangélicos nas tradições do candomblé e mantendo uma solidariedade forte e profunda com os mais pobres.

5. Somos pouco acolhedores em nossas celebrações, retrato da vida. As pessoas são números. Muitos vêm à igreja apenas para cumprir preceito ou para se abastecerem espiritualmente. Poucos vêm para se encontrar com os irmãos. Quando entram, não há quem os acolha e lhes dê alguma informação. Também não procuram ver quem já está na igreja para uma saudação; procuram ver é onde há um lugar vago que possam ocupar. Para muitos a participação se reduz à mera assistência passiva. A cultura religiosa africana é diferente. A irmã, o irmão ou visitante são cercados de atenção todo o tempo. Todos participam ativamente desde o início. Seguem o canto que é, geralmente, litânico e deixam o corpo soltar-se nos movimentos em que toda a comunidade se envolve. No final, todos participam do banquete dos Orixás. Há uma expressão simbólica de comunhão fraterna e de comunhão com a Divindade.

6. Os ritos de iniciação prolongam-se por vários anos. Não se trata de aprender princípios doutrinários, mas de conhecer e viver a prática do terreiro. Mais prolongado ainda será o tempo de preparação para a consagração ao seu Orixá. O candidato a filho ou filha-de-santo deverá preparar-se durante vários anos para deixar-se habitar pelo Orixá. A seriedade com que se fazem essas iniciações nada fica a dever ao catecumenato da antiga disciplina eclesiástica ou ao noviciado que se faz nas Ordens e congregações religiosas. Em todo caso, acredito que os mestres e as mestras de noviços lucrariam bastante se pudessem conhecer como a mãe-de-santo prepara suas filhas para se tornarem filhas-de-santo.

7. Uma questão é particularmente inquietante para mim. Os negros que conseguem estudar mostram-se muitas vezes agressivos contra a Igreja ou, pelo menos, magoados com ela. Um grupo de intelectuais negros chegou a escrever-me uma longa carta que terminava assim: "o senhor, como negro, é nosso irmão; como bispo, é nosso adversário". Durante uma das semanas Fé e Compromisso, promovida pela Arquidiocese de São Paulo, foi-me dado conhecer um arcebispo sul-africano, dirigente de uma das novas Igrejas. Ele me referia que inúmeros fiéis negros da África do Sul não se sentiam bem nas Igrejas tradicionais católico romana e anglicana. Mesmo onde não havia apartheid, eles não se encontravam como pessoas. Toda a vida eclesial era ordenada e organizada dentro de padrões culturais não-africanos. Fora da própria cultura, eles não conseguiam comunicar-se com Deus e com os irmãos. A reflexão foi crescendo e concluíram que, certamente, Deus falou também aos antepassados deles; também para eles terá havido um pentecostes. Por isso, eles deveriam organizar-se como Igrejas cristãs autônomas e autóctones conservando todas as riquezas de sua própria cultura.

Na América e no Caribe, parece que a situação é mais confortadora para nós das Igrejas tradicionais. A densa população negra do nosso continente permanece em nossas Igrejas. Nós negros, alimentamos, porém, a esperança de que nos seja reconhecido o direito de cidadania eclesial. Acreditamos cada vez mais fortemente que é possível o negro ser discípulo de Cristo e viver na Igreja sem deixar de ser negro, sem renunciar a sua cultura, sem ter de abandonar a religião dos Orixás que, como o judaísmo, poderá deixar-se impregnar da mensagem de Jesus Cristo.


Conclusão:
Deus conosco também, os Negros


Animados por esta esperança, podemos concluir que o Deus da Vida se revela ao povo negro como Aquele que os ajuda a recuperar sua identidade pessoal e comunitária, que reconstitui seus laços familiares ampliando o parentesco a partir da fé, que o leva a uma vivência comunitária, que o anima na luta contra a opressão, que o estimula na formação dos quilombos onde experimenta uma vida igualitária, fraterna e solidária.

Diante da história do povo negro, alimentada pela sua fé no Deus da Vida, concordo plenamente com o Pe. François de l’Espinay quando afirma que "Deus fala sob formas mui diferentes que se complementam uma à outra, e que cada religião possui um depósito sagrado: a palavra que Deus lhe disse".(7)

Como bispo negro da Igreja católica no Brasil, o mais velho na atualidade, rendo graças a Deus por Ele estar reavivando a memória destas verdades nas comunidades negras da América e do Caribe. Isto nos permite fazer nosso o louvor de Cristo: "Eu te louvo, ó Pai, Senhor do Céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos" (Mt 11,25).

Impulsionado pela revelação do Deus da Vida ao povo negro, seja-me permitido encerrar essa minha modesta participação com um trecho da marcha final da Missa dos Quilombos:


"Trancados na noite, milênios afora,
forçamos agora as portas do Dia.
Faremos um Povo de igual rebeldia.
Faremos um povo de bantos iguais.
Faremos de todos os lares
fraternas senzalas, sem mais.
Faremos a Negra Utopia
do novo Palmares
na só Casa Grande dos filhos do Pai.
Os Negros da África,
os Afro da América,
os Negros do Mundo,
na Aliança com todos os Pobres da Terra.

Seremos o Povo dos Povos:
Povo resgatado, povo aquilombado,
livre de senhores, de ninguém escravo,
senhores de nós, irmãos de senhores,
filhos do Senhor!

Sendo Negro o Negro,
sendo Índio o Índio,
sendo cada um como nos tem feito
a mão de Olorum".

Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)

II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas
São Paulo, 7-11 de novembro de 1994
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7. A religião dos Orixás, Outra palavra do Deus único. In: REB, Petrópolis, 47/187, set. 1987, p. 649.



O DEUS DA VIDA NAS COMUNIDADES AFRO AMERICANAS E CARIBENHAS



Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)
II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas
São Paulo, 7-11 de novembro de 1994


O Deus da vida na religião dos Orixás

Cabe aqui recordar que "os sistema religiosos pré-letrados têm natureza basicamente diversa da experiência vivida pelas grandes religiões universais. Entretanto, em muitas religiões africanas encontram-se freqüentemente elaboradas construções abstratas e intensa espiritualidade, como se expressa na idéia de um Deus incriado e criador".(2) Na mesma obra, lemos ainda: "a noção de justiça divina, por sua vez, pressupõe que exista uma espécie de contrato firmado entre a divindade e os homens. O Ser criador assegura a vida, a terra e tudo o que nela existe, exigindo, em troca, submissão e respeito. Assim, determinados males são entendidos como recursos com os quais a divindade castiga os homens que romperam, de alguma forma, sua parte no pacto. Prescrições ritualísticas religiosas configuram-se como a única maneira de alcançar o beneplácito divino".(3) Três características das antigas religiões africanas surgem bem nítidas nessa citação, a saber, Deus é criador, existe uma aliança entre Deus e a humanidade, a religião leva a uma espiritualidade profunda.


1. Monoteísmo

Teólogos e pastores prestariam bom serviço às comunidades cristãs se as ajudassem a entender que não há politeísmo na cultura religiosa africana. Os negros vindos de África não eram politeístas. Acreditavam em um Ser supremo, criador de tudo. Que os povos de cultura nagô-yorubá o chamem com o nome de Olorum (o Inaccessível) como os hebreus o denominaram Elohim, que os bantos o chamem de Nzambi (Aquele que diz e faz) ou Kalunga (Aquele que reúne) ou Pamba ou Maúnda como os gregos o denominaram Theos, ou nós o chamamos Deus e os indígenas Tupã, Ele é sempre o supremo, o inatingível, senhor do céu e da terra.
O papa Paulo VI afirma: "A idéia de Deus como causa primeira e última de todas as coisas é o elemento comum importantíssimo na vida espiritual da tradição africana. Esse conceito, percebido mais do que analisado, vivido mais do que pensado, exprime-se de modo bastante variado de cultura a cultura. Na realidade, a presença de Deus penetra a vida africana como a presença de um Ser superior, pessoal e misterioso".(4)


2. Os Orixás

Olorum se comunica conosco e se faz presente em nós através dos Orixás que são suas forças vivas. Cada família é consagrada a um Orixá, cada pessoa é protegida por seu Orixá. A proteção é constante, mas durante o culto, o orixá poderá manifesta-se em alguns de seus filhos ou de suas filhas. São momentos inesquecíveis, de profunda experiência espiritual. Os Orixás não são deuses, mas é por meio deles que Olorum entra em contato com homens e mulheres e nós entramos em comunhão com Ele. Os Orixás têm atribuições e poderes nos diversos setores da criação. Sua função não consiste em trazer favores aos humanos, mas em transmitir-lhes o dinamismo vital que possuem e que comunicam durante o tempo em que se fazem presentes no terreiro e se manifestam nas pessoas que lhes são consagradas. "O Orixá é essencialmente orientado para o bem do homem: portanto ele ama. Como não acreditar num Deus-Amor que cria e envia o Orixá?" pergunta-nos o pe. François de l’Espinay.(5) "Cresce assim a convicção de que Deus acompanha todos os passos de seus filhos como mãe".(6)


3. Os Antepassados

Os Orixás nada têm a ver com os santos da Igreja católica. Se Santo Antônio é Ogum (em outros lugares é São Jorge), se Yemanjá é Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara é Yansã, trata-se de expedientes para confundir os brancos evitando perseguições. O que mais se assemelha ao culto católico dos santos é o culto dos antepassados. Para nós, africanos, os antepassados morreram, mas não se ausentaram. Permanecem junto de suas famílias, invisíveis, protegendo-as e orientando-as. Com elas se comunicam especialmente através dos sonhos. A morte não é um fim: é a passagem para um novo modo de ser. A resposta de Cristo aos saduceus ilumina essa crença profunda na presença dos antepassados. Deus disse: "Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Ora, Ele não é um Deus de mortos, mas sim de vivos" (Mt 22,32). Em todo terreiro, por pequeno que seja, há um espaço reservado aos antepassados. A eles se dirige uma saudação no início de cada culto.


4. Candomblé, Vodu, Xangô e outras formas de celebração

Conquanto inacessível para os seres humanos, Deus está muito presente na comunidade e na vida de cada um. A cultura africana não se preocupa com definições do Ser supremo. Contenta-se com a certeza de sua presença e de sua ação constante em favor dos humanos. Também não o invoca ordinariamente. Sendo o Inacessível, a Ele se chega através de mediações. O Orixá, a que cada um é consagrado, exerce essa função de mediador. Por sua vez, os antepassados são outro sinal da presença e da benevolência de Deus. Mas é na celebração que essa presença de Deus torna-se patente na comunidade. Celebração é festa, é alegria, é lazer. Acontece de preferência à noite e se prolonga por horas a fio indo, não raro, até a madrugada. E todos saem dali felizes. Muitos vão diretamente ao trabalho. Sentem-se até fisicamente descansados graças à experiência espiritual que viveram.

A celebração é cuidadosamente preparada. Não no sentido de escolha de textos ou de cânticos. Celebração, na cultura religiosa africana, não se compõe de leituras, reflexões e cânticos. A preparação consiste em limpar e adornar o terreiro, conseguir as oferendas e deixá-las em condição de serem apresentadas, oferecidas e consumidas. Isto exige bastante trabalho que ocupa homens e mulheres em grande número. Juntar os animais ou as aves, matá-los e cosê-los, fazer a pipoca, o cuscuz e a tapioca, dosar as bebidas, tudo isso envolve praticamente toda a comunidade. Mas isso também já é revelação de Deus presente. Na alegria dos que preparam a festa e na solidariedade no trabalho, Deus se revela o Deus-Amor.

O lugar da festa é o terreiro. Não temos templos suntuosos como o que Salomão construiu. Nem basílicas, catedrais ou santuários. A festa religiosa se faz em contato com a natureza; basta um terreiro. Melhor se for terreiro de verdade, sem cimento, sem mosaicos. Assim, ao entrar no terreiro, a pés descalços, os devotos experimentarão o importante contato com a terra. A terra é mãe e é fecunda. Ela tem axé, isto é, tem energia, tem fertilidade. É comum ao negro e ao índio o respeito para com a terra e os outros elementos da natureza. Há poucos dias, ouvíamos maravilhados uma prece que Rigoberta Menchu formulava invocando "nossa mãe a Terra, nosso pai o Sol e nossa vovozinha a Lua". Esse contato com a natureza prossegue com aspersões de água perfumada com flores e plantas aromáticas, com defumações do ambientes e das pessoas. Faz lembrar a nossa água-benta e as incensações do altar, dos ministros sagrados e dos fiéis.

São preparações necessárias para a festa. Porque a festa mesmo será o encontro com os Orixás através dos quais se realiza a experiência do encontro com Deus. Todos os presentes são envolvidos, mesmo aqueles que são apenas visitantes e não fazem parte da comunidade e não praticam a religião dos Orixás. A preparação chega ao fim com a oferta que se faz a Exu. Ele é enviado como mensageiro para avisar os demais Orixás que tudo está preparado para a chegada deles.

As filhas-de-santo formam um círculo e dão início à dança ritual da qual toda a assembléia participa. O tempo se prolonga na dança e no canto. Inesperadamente algum Orixá se manifesta. Toma posse de algum de seus filhos ou filhas que entra logo em transe. Continua dançando, mas já não percebe o que acontece em derredor dele. Não vê, não escuta, não sente: vive a maravilhosa experiência de comunhão com o seu Orixá e com Deus através dele. Desta experiência participam os demais presentes cada qual a seu modo e em intensidades diversas. Caberá ao dirigente da celebração - a mãe-de-santo na tradição yorubá - determinar o momento de despedida dos Orixás e o fim da celebração. Antes, porém, haverá a confraternização: primeiro a mãe-de-santo e suas filhas, em seguida todos os presentes participarão do banquete dos orixás. As ofertas que foram feitas são agora distribuídas com todos para que todos, sem exceção, possam entrar em comunhão com o mundo invisível.

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2. As grandes religiões, São Paulo, Abril cultural, 1973, p. 835.
3. Ibidem, p. 839.
4. Mensagem Africae Terrarum, n. 8, citado em Raul RUIZ DE ASÚA ALTUNA, Cultura tradicional banto, Luanda, Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985, p. 390-391.
5. A religião dos Orixás, Outra palavra do Deus único. In: REB, Petrópolis, 47/187, set. 1987, p. 646.
6. Heitor FRISOTTI, Comunidade negra, evangelização e ecumenismo, caderno mimeografado, Salvador, 1992, p. 30).