terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O DEUS DA VIDA NAS COMUNIDADES AFRO AMERICANAS E CARIBENHAS



Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)
II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas
São Paulo, 7-11 de novembro de 1994


O Deus da vida na religião dos Orixás

Cabe aqui recordar que "os sistema religiosos pré-letrados têm natureza basicamente diversa da experiência vivida pelas grandes religiões universais. Entretanto, em muitas religiões africanas encontram-se freqüentemente elaboradas construções abstratas e intensa espiritualidade, como se expressa na idéia de um Deus incriado e criador".(2) Na mesma obra, lemos ainda: "a noção de justiça divina, por sua vez, pressupõe que exista uma espécie de contrato firmado entre a divindade e os homens. O Ser criador assegura a vida, a terra e tudo o que nela existe, exigindo, em troca, submissão e respeito. Assim, determinados males são entendidos como recursos com os quais a divindade castiga os homens que romperam, de alguma forma, sua parte no pacto. Prescrições ritualísticas religiosas configuram-se como a única maneira de alcançar o beneplácito divino".(3) Três características das antigas religiões africanas surgem bem nítidas nessa citação, a saber, Deus é criador, existe uma aliança entre Deus e a humanidade, a religião leva a uma espiritualidade profunda.


1. Monoteísmo

Teólogos e pastores prestariam bom serviço às comunidades cristãs se as ajudassem a entender que não há politeísmo na cultura religiosa africana. Os negros vindos de África não eram politeístas. Acreditavam em um Ser supremo, criador de tudo. Que os povos de cultura nagô-yorubá o chamem com o nome de Olorum (o Inaccessível) como os hebreus o denominaram Elohim, que os bantos o chamem de Nzambi (Aquele que diz e faz) ou Kalunga (Aquele que reúne) ou Pamba ou Maúnda como os gregos o denominaram Theos, ou nós o chamamos Deus e os indígenas Tupã, Ele é sempre o supremo, o inatingível, senhor do céu e da terra.
O papa Paulo VI afirma: "A idéia de Deus como causa primeira e última de todas as coisas é o elemento comum importantíssimo na vida espiritual da tradição africana. Esse conceito, percebido mais do que analisado, vivido mais do que pensado, exprime-se de modo bastante variado de cultura a cultura. Na realidade, a presença de Deus penetra a vida africana como a presença de um Ser superior, pessoal e misterioso".(4)


2. Os Orixás

Olorum se comunica conosco e se faz presente em nós através dos Orixás que são suas forças vivas. Cada família é consagrada a um Orixá, cada pessoa é protegida por seu Orixá. A proteção é constante, mas durante o culto, o orixá poderá manifesta-se em alguns de seus filhos ou de suas filhas. São momentos inesquecíveis, de profunda experiência espiritual. Os Orixás não são deuses, mas é por meio deles que Olorum entra em contato com homens e mulheres e nós entramos em comunhão com Ele. Os Orixás têm atribuições e poderes nos diversos setores da criação. Sua função não consiste em trazer favores aos humanos, mas em transmitir-lhes o dinamismo vital que possuem e que comunicam durante o tempo em que se fazem presentes no terreiro e se manifestam nas pessoas que lhes são consagradas. "O Orixá é essencialmente orientado para o bem do homem: portanto ele ama. Como não acreditar num Deus-Amor que cria e envia o Orixá?" pergunta-nos o pe. François de l’Espinay.(5) "Cresce assim a convicção de que Deus acompanha todos os passos de seus filhos como mãe".(6)


3. Os Antepassados

Os Orixás nada têm a ver com os santos da Igreja católica. Se Santo Antônio é Ogum (em outros lugares é São Jorge), se Yemanjá é Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara é Yansã, trata-se de expedientes para confundir os brancos evitando perseguições. O que mais se assemelha ao culto católico dos santos é o culto dos antepassados. Para nós, africanos, os antepassados morreram, mas não se ausentaram. Permanecem junto de suas famílias, invisíveis, protegendo-as e orientando-as. Com elas se comunicam especialmente através dos sonhos. A morte não é um fim: é a passagem para um novo modo de ser. A resposta de Cristo aos saduceus ilumina essa crença profunda na presença dos antepassados. Deus disse: "Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Ora, Ele não é um Deus de mortos, mas sim de vivos" (Mt 22,32). Em todo terreiro, por pequeno que seja, há um espaço reservado aos antepassados. A eles se dirige uma saudação no início de cada culto.


4. Candomblé, Vodu, Xangô e outras formas de celebração

Conquanto inacessível para os seres humanos, Deus está muito presente na comunidade e na vida de cada um. A cultura africana não se preocupa com definições do Ser supremo. Contenta-se com a certeza de sua presença e de sua ação constante em favor dos humanos. Também não o invoca ordinariamente. Sendo o Inacessível, a Ele se chega através de mediações. O Orixá, a que cada um é consagrado, exerce essa função de mediador. Por sua vez, os antepassados são outro sinal da presença e da benevolência de Deus. Mas é na celebração que essa presença de Deus torna-se patente na comunidade. Celebração é festa, é alegria, é lazer. Acontece de preferência à noite e se prolonga por horas a fio indo, não raro, até a madrugada. E todos saem dali felizes. Muitos vão diretamente ao trabalho. Sentem-se até fisicamente descansados graças à experiência espiritual que viveram.

A celebração é cuidadosamente preparada. Não no sentido de escolha de textos ou de cânticos. Celebração, na cultura religiosa africana, não se compõe de leituras, reflexões e cânticos. A preparação consiste em limpar e adornar o terreiro, conseguir as oferendas e deixá-las em condição de serem apresentadas, oferecidas e consumidas. Isto exige bastante trabalho que ocupa homens e mulheres em grande número. Juntar os animais ou as aves, matá-los e cosê-los, fazer a pipoca, o cuscuz e a tapioca, dosar as bebidas, tudo isso envolve praticamente toda a comunidade. Mas isso também já é revelação de Deus presente. Na alegria dos que preparam a festa e na solidariedade no trabalho, Deus se revela o Deus-Amor.

O lugar da festa é o terreiro. Não temos templos suntuosos como o que Salomão construiu. Nem basílicas, catedrais ou santuários. A festa religiosa se faz em contato com a natureza; basta um terreiro. Melhor se for terreiro de verdade, sem cimento, sem mosaicos. Assim, ao entrar no terreiro, a pés descalços, os devotos experimentarão o importante contato com a terra. A terra é mãe e é fecunda. Ela tem axé, isto é, tem energia, tem fertilidade. É comum ao negro e ao índio o respeito para com a terra e os outros elementos da natureza. Há poucos dias, ouvíamos maravilhados uma prece que Rigoberta Menchu formulava invocando "nossa mãe a Terra, nosso pai o Sol e nossa vovozinha a Lua". Esse contato com a natureza prossegue com aspersões de água perfumada com flores e plantas aromáticas, com defumações do ambientes e das pessoas. Faz lembrar a nossa água-benta e as incensações do altar, dos ministros sagrados e dos fiéis.

São preparações necessárias para a festa. Porque a festa mesmo será o encontro com os Orixás através dos quais se realiza a experiência do encontro com Deus. Todos os presentes são envolvidos, mesmo aqueles que são apenas visitantes e não fazem parte da comunidade e não praticam a religião dos Orixás. A preparação chega ao fim com a oferta que se faz a Exu. Ele é enviado como mensageiro para avisar os demais Orixás que tudo está preparado para a chegada deles.

As filhas-de-santo formam um círculo e dão início à dança ritual da qual toda a assembléia participa. O tempo se prolonga na dança e no canto. Inesperadamente algum Orixá se manifesta. Toma posse de algum de seus filhos ou filhas que entra logo em transe. Continua dançando, mas já não percebe o que acontece em derredor dele. Não vê, não escuta, não sente: vive a maravilhosa experiência de comunhão com o seu Orixá e com Deus através dele. Desta experiência participam os demais presentes cada qual a seu modo e em intensidades diversas. Caberá ao dirigente da celebração - a mãe-de-santo na tradição yorubá - determinar o momento de despedida dos Orixás e o fim da celebração. Antes, porém, haverá a confraternização: primeiro a mãe-de-santo e suas filhas, em seguida todos os presentes participarão do banquete dos orixás. As ofertas que foram feitas são agora distribuídas com todos para que todos, sem exceção, possam entrar em comunhão com o mundo invisível.

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2. As grandes religiões, São Paulo, Abril cultural, 1973, p. 835.
3. Ibidem, p. 839.
4. Mensagem Africae Terrarum, n. 8, citado em Raul RUIZ DE ASÚA ALTUNA, Cultura tradicional banto, Luanda, Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985, p. 390-391.
5. A religião dos Orixás, Outra palavra do Deus único. In: REB, Petrópolis, 47/187, set. 1987, p. 646.
6. Heitor FRISOTTI, Comunidade negra, evangelização e ecumenismo, caderno mimeografado, Salvador, 1992, p. 30).

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