terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O DEUS DA VIDA NAS COMUNIDADES AFRO AMERICANAS E CARIBENHAS


Pontos para nossa reflexão


1. A teologia que nasceu e se desenvolve na América e no Caribe privilegia os pobres por serem os preferidos de Deus. Ela não parte dos princípios gerais, das verdades incontestes ou dos dogmas proclamados. Humildemente, o teólogo da libertação contempla a realidade do povo e identifica nessa realidade os apelos do Senhor. É o primeiro tempo da teologia: contemplar e fazer silêncio. A seguir vem a reflexão teológica: o que Deus está dizendo, quais são os seus apelos diante desta realidade? O processo vale para os níveis socioeconômicos e culturais; vale igualmente para o religioso. O que Deus diz ao teólogo que se coloca frente ao comportamento religioso das comunidades negras? Quem sabe, por serem mais pobres socialmente não serão muito mais ricas em valores humanos? Valores evangélicos talvez perdidos pela cristandade e que podem e devem ser reconquistados com a ajuda de quem conseguiu conservá-los em suas tradições e ritos religiosos apesar de todas as adversidades?

2. Um desses valores bíblicos é a unidade e a inseparabilidade da pessoa. Aprendemos tão bem a filosofia grega da distinção entre corpo e alma que acabamos separando os dois. O corpo é o primo pobre. Deve ser tratado com dureza para submeter- se ao espírito que é a parte nobre do homem. Aprendemos a fazer oração mental, rezamos e pedimos orações e missas pelas almas do purgatório. Os missionários pregavam nas Missões populares: "Salva a tua alma!". O próprio Livro da Sabedoria parece ter sofrido a influência dessa dicotomia ensinada pela filosofia grega. Sem entrar em discussões filosóficas, o negro nos ensina a não separar o que Deus uniu: corpo e alma formam unidade aqui e no além. O corpo é bom ou ruim tanto quanto a alma. Reza- se e celebra-se com a pessoa toda e é muito importante, indispensável mesmo, a participação do corpo. Não há partes do culto que se destinem só ao espírito. Nas celebrações do candomblé não há leituras, não há pregações, não há momentos de atividade só para o espírito enquanto o corpo deve abster-se de qualquer participação. Será por isso que o povo simples se identifica mais com as procissões do que com as missas e celebrações da Palavra? Será por isso que as Assembléias de Deus e a Renovação Carismática encontram grande aceitação entre os pequenos?

3. O negro leva muito a sério sua pertença a um Orixá. Para ele, ser "filho de Ogum" ou "filha de Yansã" é mais do que uma honra; é uma segurança. Ele sabe que é protegido, é guardado por seu Orixá, é guiado por ele e deve obedecer-lhe. O negro vive a mística da pertença. Acredito que meus antepassados beberam essa convicção na mesma fonte dos discípulos de Cristo. O Espírito Santo, o grande Orixá, aquele que vem e permanece, nos santifica, nos transforma, nos ensina a chamar Deus de Abbá, nosso Pai querido, Aquele cuja orientação devemos seguir constantemente para podermos ser filhos de Deus. Pois, "todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8,14).

4. A religião dos Orixás, de modo especial na cultura nagô-yorubá, atribui papel de destaque à mulher. No terreiro, a mãe-de-santo é a pessoa mais importante, a maior autoridade, a sacerdotisa. Um advogado, ex-prefeito de Salvador, participara da mesma reunião a que me referi acima, dos agentes de pastoral negros com representantes dos cultos afro-brasileiros. Ele chegou um pouco atrasado. Antes de fazer qualquer saudação ou dar explicações, ele se dirigiu a um ponto da sala, ajoelhou-se diante de uma senhora negra idosa e beijou-lhe respeitosamente a mão. Era a mãe-de-santo do terreiro a que ele pertencia. Só depois se dirigiu aos demais assistentes. Mulher e terra têm em comum o axé, a energia, a fecundidade. Daí a semelhança de tratamento: trata-se com respeito e gratidão a mãe-terra e a mãe-de-santo. Certamente outra seria a situação religiosa de nossos países latino-americanos e caribenhos se esse valor religioso tivesse sido conservado. Teríamos milhares e centenas de milhares de pequenas comunidades cristãs organizadas na base do terreiro, com uma mãe-de-santo à frente, incorporando os valores evangélicos nas tradições do candomblé e mantendo uma solidariedade forte e profunda com os mais pobres.

5. Somos pouco acolhedores em nossas celebrações, retrato da vida. As pessoas são números. Muitos vêm à igreja apenas para cumprir preceito ou para se abastecerem espiritualmente. Poucos vêm para se encontrar com os irmãos. Quando entram, não há quem os acolha e lhes dê alguma informação. Também não procuram ver quem já está na igreja para uma saudação; procuram ver é onde há um lugar vago que possam ocupar. Para muitos a participação se reduz à mera assistência passiva. A cultura religiosa africana é diferente. A irmã, o irmão ou visitante são cercados de atenção todo o tempo. Todos participam ativamente desde o início. Seguem o canto que é, geralmente, litânico e deixam o corpo soltar-se nos movimentos em que toda a comunidade se envolve. No final, todos participam do banquete dos Orixás. Há uma expressão simbólica de comunhão fraterna e de comunhão com a Divindade.

6. Os ritos de iniciação prolongam-se por vários anos. Não se trata de aprender princípios doutrinários, mas de conhecer e viver a prática do terreiro. Mais prolongado ainda será o tempo de preparação para a consagração ao seu Orixá. O candidato a filho ou filha-de-santo deverá preparar-se durante vários anos para deixar-se habitar pelo Orixá. A seriedade com que se fazem essas iniciações nada fica a dever ao catecumenato da antiga disciplina eclesiástica ou ao noviciado que se faz nas Ordens e congregações religiosas. Em todo caso, acredito que os mestres e as mestras de noviços lucrariam bastante se pudessem conhecer como a mãe-de-santo prepara suas filhas para se tornarem filhas-de-santo.

7. Uma questão é particularmente inquietante para mim. Os negros que conseguem estudar mostram-se muitas vezes agressivos contra a Igreja ou, pelo menos, magoados com ela. Um grupo de intelectuais negros chegou a escrever-me uma longa carta que terminava assim: "o senhor, como negro, é nosso irmão; como bispo, é nosso adversário". Durante uma das semanas Fé e Compromisso, promovida pela Arquidiocese de São Paulo, foi-me dado conhecer um arcebispo sul-africano, dirigente de uma das novas Igrejas. Ele me referia que inúmeros fiéis negros da África do Sul não se sentiam bem nas Igrejas tradicionais católico romana e anglicana. Mesmo onde não havia apartheid, eles não se encontravam como pessoas. Toda a vida eclesial era ordenada e organizada dentro de padrões culturais não-africanos. Fora da própria cultura, eles não conseguiam comunicar-se com Deus e com os irmãos. A reflexão foi crescendo e concluíram que, certamente, Deus falou também aos antepassados deles; também para eles terá havido um pentecostes. Por isso, eles deveriam organizar-se como Igrejas cristãs autônomas e autóctones conservando todas as riquezas de sua própria cultura.

Na América e no Caribe, parece que a situação é mais confortadora para nós das Igrejas tradicionais. A densa população negra do nosso continente permanece em nossas Igrejas. Nós negros, alimentamos, porém, a esperança de que nos seja reconhecido o direito de cidadania eclesial. Acreditamos cada vez mais fortemente que é possível o negro ser discípulo de Cristo e viver na Igreja sem deixar de ser negro, sem renunciar a sua cultura, sem ter de abandonar a religião dos Orixás que, como o judaísmo, poderá deixar-se impregnar da mensagem de Jesus Cristo.


Conclusão:
Deus conosco também, os Negros


Animados por esta esperança, podemos concluir que o Deus da Vida se revela ao povo negro como Aquele que os ajuda a recuperar sua identidade pessoal e comunitária, que reconstitui seus laços familiares ampliando o parentesco a partir da fé, que o leva a uma vivência comunitária, que o anima na luta contra a opressão, que o estimula na formação dos quilombos onde experimenta uma vida igualitária, fraterna e solidária.

Diante da história do povo negro, alimentada pela sua fé no Deus da Vida, concordo plenamente com o Pe. François de l’Espinay quando afirma que "Deus fala sob formas mui diferentes que se complementam uma à outra, e que cada religião possui um depósito sagrado: a palavra que Deus lhe disse".(7)

Como bispo negro da Igreja católica no Brasil, o mais velho na atualidade, rendo graças a Deus por Ele estar reavivando a memória destas verdades nas comunidades negras da América e do Caribe. Isto nos permite fazer nosso o louvor de Cristo: "Eu te louvo, ó Pai, Senhor do Céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos" (Mt 11,25).

Impulsionado pela revelação do Deus da Vida ao povo negro, seja-me permitido encerrar essa minha modesta participação com um trecho da marcha final da Missa dos Quilombos:


"Trancados na noite, milênios afora,
forçamos agora as portas do Dia.
Faremos um Povo de igual rebeldia.
Faremos um povo de bantos iguais.
Faremos de todos os lares
fraternas senzalas, sem mais.
Faremos a Negra Utopia
do novo Palmares
na só Casa Grande dos filhos do Pai.
Os Negros da África,
os Afro da América,
os Negros do Mundo,
na Aliança com todos os Pobres da Terra.

Seremos o Povo dos Povos:
Povo resgatado, povo aquilombado,
livre de senhores, de ninguém escravo,
senhores de nós, irmãos de senhores,
filhos do Senhor!

Sendo Negro o Negro,
sendo Índio o Índio,
sendo cada um como nos tem feito
a mão de Olorum".

Dom José Maria Pires
João Pessoa, PB (Brasil)

II Consulta de Teologia e Culturas
Afro-americanas e Caribenhas
São Paulo, 7-11 de novembro de 1994
_________________
7. A religião dos Orixás, Outra palavra do Deus único. In: REB, Petrópolis, 47/187, set. 1987, p. 649.



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