terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

TERRITORIALIDADES AFRO-BRASILEIRAS



Ao lado da noção de ancestralidade, outro conceito fundamental para compreendermos as religiões de matriz africana é o de território, melhor entendido no plural. Esta palavra na sua concepção mais simples tem haver com a terra, que extrapola o chão que pisamos para significar todo o mundo, tudo que é extenso, tem forma, é visível a nossos olhos. Essa é, pois, a concepção de aiyê, por exemplo. Ela inclui a natureza num sentido bem amplo e as cidades, fundadas sobre os ancestrais através dos antepassados. Num trabalho realizado no Recôncavo baiano, especificamente nas cidades de Cachoeira, são Félix, Muritiba, Santo Amaro e São Gonçalo, publicado sob o título: Nagô, a nação de ancestrais intinerantes, numa entrevista recolhi a valiosa fala de um informante, perguntado sobre os africanos, a seguinte frase: “a cidade de Cachoeira é toda condenada.” Parei e fiquei olhando para ele que prosseguiu: “essas casas que você vê ai são todas de africanos, por exemplo, quando uma pessoa aluga ou compra um casarão desses, muitas vezes elas começam a passar mal. Quando se vai olhar é o espírito de um africano que está ali cobrando para ser cultuado. Tudo aqui é africano, eles nunca abandonaram as suas casas.” Essa revelação me fez pensar na cidade, entendida na maioria das vezes, por alguns discursos arquitetônicos como algo vazio ou que pode ser simplesmente reduzido a “cal e pedra”. Isso equivale dizer que a noção de território está diretamente relacionada com conceitos como espaço, lugar e conseqüentemente com o de identidade. Identidades negras reconstruídas na diáspora a partir dos universos fragmentados pela escravidão. Sobre o conceito de espaço é digno de nota acrescentar que é ele quem nos permite representar por exemplo o mundo de outra maneira. O lugar diz respeito ao local onde estamos, falamos, construímos a nossa identidade, sendo assim um conceito também político. O impacto representado pela escravidão aos mais diversos povos africanos ainda está para ser avaliado, sem falar nos danos causados ao patrimônio material e imaterial negro-africano, ao ferir conceitos básicos ligados a identidade como a terra. Nos últimos anos, alguns estudos vêm afirmando que a fragmentação das culturas africanas, sua multiplicidade, ao lado de fatores externos constituíram impedimentos para se pensar nas religiões afro-brasileiras ao lado de outras construções de origem africanas no Brasil como uma espécie de permanências negro africanas no Novo Mundo. Não é de se esperar que as múltiplas vivências trazidas com os africanos ignorassem outras aqui encontradas. Ao contrário, homens e mulheres negras estabeleceram relações com os universos simbólicos que se depararam, ora em condições de desigualdade, ora de prestígio, ora de solidariedade. A noção de casa é um bom exemplo disso. Esta casa onde se realiza o culto pode possuir dimensões amplas, mas também corresponder a um espaço doméstico que num determinado momento vai servir como local de celebração. É muito provável que inicialmente, africanos e africanas cultuaram os ancestrais em lugares bastante modestos como aqueles onde eles transitavam, era um culto discreto, realizado em alguns lugares das vias públicas, sob algumas árvores, em alguns altares improvisados ao lado de santos católicos ou mesmo levados no seu próprio corpo dentro de bolsas, etc. Quando puderam, em algumas regiões do país adquiriram em locais afastados do perímetro urbano, extensões significativas de terras, chamadas de roças. Ou mesmo, foram obrigados a se distanciar do centro da cidade, quando o culto feito através de palma não era suficiente para não despertar a polícia que de forma enérgica reprimia qualquer manifestação cultural de origem africana. Enquanto a expressão terreiro em alguns lugares serve para designar tanto a casa onde se realiza o culto, quanto a área externa, a palavra roça diz respeito a algo mais amplo. Os terreiros, na verdade, são espaços simbólicos construídos à luz de culturas provenientes de grandes civilizações como Angola, Congo, Daomé, Oyó e outras, destruídas pela escravidão. Outra palavra que nos ajuda a entender isso é a noção de natureza. Os orixás dos nagôs, os nikise dos angola/congo e os voduns dos daomeanos ao lado de ancestrais indígenas têem a terra como uma grande referência. Acredita-se que os ancestrais moram na terra ao lado de outros que são a própria terra, como o vodun Ajunsum, o nikise Kavungo e o orixá Obaluaiyê. Ao lado da terra, as árvores possuem significado especial. A expressão que aparece em alguns mitos: No tempo em que o mundo era habitado pelas árvores ilustra um período considerado primordial. Alguns orixás e nkise são cultuados em algumas árvores. Elas são, todavia lugar por excelência dos voduns. Há voduns que são cultuados sob determinadas árvores e há também aqueles que são representados por elas próprias. Algumas casas de tradição jeje contam o seguinte mito: Certo dia, o céu e a terra entraram numa disputa sem fim. A terra passou a zombar do céu e vice-versa. A primeira gabava-se que lhe sustentava, era a superfície onde se erguiam as grandes cidades, o local de ida e vinda das pessoas e por fim, morada dos ancestrais. Por sua vez, o céu não deixava por menos. Urdia que ele era a garantia da vida; era nele que passeava os astros, moravam as estrelas, planavam as aves, controlava as estações e era através dele que a humanidade se guiava. Um dia, o céu muito aborrecido resolveu dá um castigo à terra. Assim, durante um longo período, a chuva não caiu mais sobre a terra. A terra seca, não pode mais garantir o sustento das plantas, os rios começaram a secar, os animais com o passar dos dias iam morrendo de sede, as doenças passaram a assolar o mundo, tudo passou a perecer. Restou apenas uma árvore, Loko. Loko é um ancestral muito antigo. É uma grande árvore (Ficus dolares) que desde cedo com sua copa aprendeu a respeitar o céu e com suas raízes profundas, amar a terra. Durante um longo período, muitos animais e até mesmo as pessoas se protegeram sob a copa de Loko. Na falta d´agua, e de vento, Loko garantia o frescor, as vezes a própria alimentação. O céu também ficou triste, a humanidade nem sequer mais olhava para ele. Antes que tudo fosse destruído, Loko mostrou ao céu e a terra que ambos possuíam a mesma importância e salvou a humanidade da extinção. As plantas em linhas gerais possuem enorme significado para as religiões de matriz africana. São delas que são extraídas os remédios e venenos. As folhas fornecem também a seiva, sangue que circula dentro de todos os seres vivos e também as combinações que compõem os banhos que visam restabelecer o equilíbrio do ser humano. Nos terreiros as folhas aparecem na forma do orixá Ossain, do Ninkice Katendê, do vodun Agué, ou mesmo dos caboclos, ancestrais indígena presentes nas religiões afro-brasileiras. Ao lado das folhas, ganham destaque, as raízes, as sementes, os grãos, os frutos e as flores. Não podemos falar do universo das religiões afro-brasileiras sem mencionarmos a água. Estas são primordiais. Muitos ancestrais trazidos para o Brasil nada mais são do que rios, cachoeiras e lagos, que além do sustento garante as idas e vindas de pessoas e dão proteção a grupos inteiros. Todos estes elementos são reunidos no conceito de territorialidade, ameaçado constantemente, ora pela especulação imobiliária, ora pelo abandono dos órgãos públicos de alguns espaços sagrados. Como exemplo do primeiro, na cidade de Salvador temos o caso do Vale Encantado em Patamares que trava uma luta na justiça para sobreviver, sem falarmos do Parque São Bartolomeu, área cuja transformação em Parque significou o abandono. Ainda hoje o povo de candomblé luta para garantir alguns espaços públicos fundamentais para a manutenção de seus rituais, fato que não somente nos ajuda a pensar na intolerância religiosa mas também na cidade que os africanos e africanas traçaram a partir de locais como a Jaqueira do Carneiro, Ladeira do Cabula, bairro da Saúde e outros. Nos ajudam a pensar a cidade de Salvador, por exemplo, não apenas como a mais negra da diáspora, mas a que onde homens e mulheres negras reelaboraram visões de mundo a partir de conceitos que não lhes colocavam como centro, mas ponto de partida de povos que “desde o inicio do mundo” marcharam para todas as partes da terra.